Ontem vi um filme (Shattered Glass, de Billy Ray), que conta a história verídica de um jornalista da New Republic, Stephen Glass, que, nos anos noventa, inventava reportagens do princípio ao fim, e com grande sucesso, até a fraude ser descoberta e ele despedido. O filme já tem mais de dez anos e vê-se bem. A matéria, de resto, é apaixonante. Quem não gosta que o ajudem a perceber o que se passa na cabeça de alguém, digamos, frequentemente dado a enganar os outros e como vive ele com essa sua particularidade no dia-a-dia?
Melhores ainda são, é claro, os mitómanos. O acaso fez-me conhecer, há muito tempo, dois. Um, tinha tido o privilégio de informar pessoalmente Jimmy Carter da existência de um “Plano B” da Indonésia para invadir Timor, além de ter coordenado a instalação de todo o equipamento informático do Instituto Pasteur, em Paris (esta foi inventada no momento, por causa de um cartaz, que se encontrava na sala onde estávamos, do dito Instituto). Entre muitas – e quando digo muitas, quero mesmo dizer muitas – outras coisas. O outro, fora comandante de um submarino no Báltico e autor de subtilíssimos artigos sobre a filosofia de Husserl, publicados por esse mundo fora e universalmente admirados (o único defeito era, é claro, não existirem). Também entre muitas, muitas, outras coisas.
Por estas e por outras, pus-me um dia a pensar como funciona a cabeça de um mitómano. E lembro-me de ter chegado a pelo menos duas conclusões. A primeira, é que um mitómano que se preze não resiste à mais pequena solicitação. Vê um cartaz do Instituto Pasteur e, zás!, é compulsivo, tem logo de ter estado lá, e não certamente como porteiro. Fala-se de um autor e, com a velocidade de um relâmpago, ei-lo logo consagrado especialista dele. No fundo, é talvez uma versão radical daquela dificuldade muito generalizada em dizer “não sei”. Já não me lembro do nome do filósofo alemão que escreveu um livro (que nunca li) com o óptimo título Da dificuldade em dizer não. Valeria a pena escrever um livro sobre “A dificuldade em dizer não sei”, se Montaigne não tivesse já escrito o essencial na matéria. De qualquer maneira, os mitómanos levam essa dificuldade às últimas consequências, e não só sabem como estiveram, foram, realizaram.
A segunda conclusão respeita ao processo de pensamento do mitómano. Esta é mais especulativa, mas não me parece que me engane. Imaginem um mitómano em frente a um mapa do mundo. Os olhos vagueiam pelas corzinhas todas, pelas vastas manchas de azul, até se fixarem num pontinho duma mancha amarela e encontrarem a palavra “Samarcanda”. É uma espécie de choque. Como pude eu não ter nunca estado em Samarcanda? Depois, vem a dúvida. Será que eu não estive mesmo em Samarcanda? A dúvida, como se sabe, irrita, mas, graças a Deus, chega breve a epifania. Mas é claro que estive em Samarcanda, é absolutamente necessário que tenha estado em Samarcanda. É algo próximo da chamada prova ontológica da existência de Deus, numa das suas versões. A perfeição comporta necessariamente a existência, a existência é um predicado necessário da perfeição, uma coisa, se é perfeita, não pode deixar de existir. O argumento falha por uma razão célebre: um milhão de euros sonhados não acrescentam infelizmente nada à minha conta bancária, e, mais geralmente, a existência não é um predicado, não se deduz de uma ideia. Se não falhasse, de resto, como alguém lembrou, ter-se-ia sabido. Do mesmo modo, o mitómano continua sem nunca ter estado em Samarcanda. Enfim, que sabemos nós?
É, por acaso, um processo mental que encontramos em boa parte dos utopistas. Os grandes utopistas imaginam uma sociedade de tal modo perfeita que tem necessariamente de existir, a existência, quase como no argumento ontológico, decorre imperativamente da perfeição. A visão da utopia, a certeza da necessidade da sua realização, obtém-se, na maior parte dos casos, através de uma ideia que, subitamente, ganha uma força extraordinária. Qualquer grande utopista serviria para ilustrar isto. Por exemplo, o americano Edward Bellamy, que publicou em 1888 um livro intitulado Looking Backward. A sua ideia, ao começar a escrever o livro, disse-o anos depois, em 1894, era a de compor “um conto de fadas de felicidade social”, “um palácio de nuvens para uma humanidade ideal”. Mas surgiu de repente uma ideia que imediatamente tomou conta dele e que, literalmente, o arrebatou: “confiar o trabalho de manter a comunidade a um exército industrial, como se confia ao exército o trabalho de a proteger”. E assim, “em vez de um simples conto de fadas de felicidade social, [Looking Backward] tornou-se o veículo de um projecto bem definido de reorganização industrial”.
No fundo, o processo de pensamento dos mitómanos e dos utopistas é muito parecido, sob vários aspectos, com o nosso. Não enganam, como o outro do filme, voluntariamente – no caso dos utopistas a questão, bem entendido, nem se deve colocar assim -, limitam-se a manifestar, de uma forma particular, a sua insatisfação com a realidade tal como ela se lhes apresenta. E quem não percebe isso? Quem não esteve próximo de se iludir, ou se iludiu mesmo, relatando uma conversa antiga e atribuindo-se a si mesmo a boa resposta que na altura não teve? Como é que não me lembrei de lhe dizer aquilo? Mas não lhe terei dito? Era lá capaz de não lhe ter dito! É claro que lhe disse. É um exemplo entre mil. Enfim, não temos provavelmente assim muitas razões para estarmos muito contentes connosco e decretarmos taxativamente a loucura dos outros.
Digo isto sobre não termos muitas razões para andarmos contentes, embora eu, pessoalmente, tenha imensas. Pelo menos tenho uma, enorme. É que soube, no outro dia, pelo ministro Mário Centeno, que sou rico. A coisa nunca me tinha passado pela cabeça, diria mesmo que possuía até várias provas do contrário, e ainda não estou em mim. A palavra do ministro, da qual não posso duvidar, abriu-me, como se diz, um novo horizonte de expectativas com que não contava. É verdade que quase no mesmo dia o primeiro-ministro António Costa me aconselhou a deixar de fumar, para poupar dinheiro. E, tenho de reconhecer, acertou em cheio, porque fumo, em vários sentidos, acima das minhas possibilidades. Mas confesso que fiquei um bocado perplexo, porque a boa notícia não bate bem com a má notícia. Sendo, no entanto, um bom cidadão, prefiro concentrar-me na primeira.
Apesar de algumas dúvidas. Já me aconteceu, por estes dias, procurar e não encontrar sinal algum tangível da minha riqueza. E não saber o que pensar. Será que essa história de eu ser rico não é inventada do princípio ao fim? Não haverá qualquer coisa de suspeito nela? Não haverá qualquer falha na explicação de uma ou outra incoincidência com a realidade? Não me estarão a enganar? Não, não posso pensar o que estou a pensar.