Vi, na televisão, um bocado das cerimónias do 10 de Junho em Braga. Em particular, vi o discurso do Presidente, com as suas partes sobre a nossa história e o seu elogio ao povo. Como de costume, para Marcelo, somos óptimos. Não abusou, é verdade, da invocação da história para nos fazer esquecer as agruras do presente. Não nos pôs a todos em espírito no lugar imaginário de uma glória que ininterruptamente nos banharia. Limitou-se a dizer que o nosso povo é excelente e cheio de virtudes. Nada contra, evidentemente. Além de tudo, faz parte da retórica tradicional destas celebrações e não se esperaria uma grande inovação no capítulo.
No entanto, ao ouvir aquelas palavras, deu-me para uma certa tristeza. E ela aumentou quando o vi mais tarde, na metade das celebrações que teve lugar em Londres, repetir o elogio das nossas várias excelências. A tristeza vinha de um certo sentimento de vazio. Toda aquela conversa parecia calculada para adormecer o nosso sentimento do presente e para nos mergulhar numa espécie de intemporalidade tépida que nos protegeria de uma consciência excessiva da palpável decadência do nosso dia-a-dia. E aumentou a tristeza quando o vi responder a uma pergunta sobre o fecho das urgências de obstetrícia. O que disse Marcelo em Londres? Disse que estávamos em presença de “um ponto crítico específico”. Isto é: esvaziou de sentido um fenómeno que nada tem, de resto, de muito singular, visto que se repete variadas vezes aqui e ali, com consequências comprovadamente danosas para o tal “povo” que ele tanto prazer teve em elogiar.
O mesmo esvaziamento de sentido teve lugar ontem na conferência de imprensa da ministra da Saúde, Marta Temido, que era suposta anunciar uma solução para o caos que se vive nas ditas urgências e no SNS em geral. Naquele estilo tão original que a caracteriza, em que os sorrisos postiços aparecem amiúde, como uma espécie de erro de sintaxe, no meio da referência a problemas graves, Marta Temido revelou-nos a sua solução mágica para o problema do encerramento das urgências: a criação de uma “comissão de acompanhamento” que resolveria doravante os problemas que o ministério que dirige desde há longos anos não conseguiu até agora resolver. Nenhuma referência à destruição das PPP na Saúde, por ela activamente promovida, que limitaram grandemente a decadência do SNS enquanto existiram. Por exemplo: a do Hospital de Braga, onde Marcelo celebrou o Dia de Portugal, aparentemente um sucesso que a ministra se empenhou em destruir. Resultado: agora, também a sua urgência de obstetrícia é obrigada a encerrar por falta de médicos.
As culpas de Marcelo e do Governo, particularmente da ministra da Saúde, nestas coisas são obviamente muito diferentes. A culpa da ministra é a de um erro que é talvez o mais indesculpável em matéria política: aquele que tem origem numa cegueira ideologicamente motivada. O ódio aos privados – ao “negócio da saúde”, que também não sai da boca do Bloco e do PC – conduziu o SNS ao impasse no qual presentemente vive e do qual, com esta ministra, é impossível sair. Não digo que as PPP sejam demonstravelmente salvíficas, mas obviamente representam uma solução razoável para uma boa parte dos nossos problemas, uma solução que é criminoso recusar. Acontece que uma tal solução é anátema para o governo socialista e para os seus antigos parceiros da “geringonça”. Admito que em certas circunstâncias seja valoroso morrer por respeito pelos nossos princípios. Duvido que alguma vez seja aconselhável morrer por causa dos princípios dos outros – dos princípios de Marta Temido, Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa, neste caso.
A culpa de Marcelo é muito diferente. É a culpa de um Presidente que não tem nenhuma ideia para Portugal. Não digo que não goste de Portugal – tenho a certeza que gosta – nem que não seja um homem dotado de inteligência e graça – obviamente é. Mas faltam-lhe decididamente ideias orientadoras para o país, falta essa que o torna inerme face aos preconceitos ideológicos mais primitivos que o governo exibe em várias áreas. E a maneira que ele tem de compensar esse defeito – e é um defeito terrível para quem ocupa aquele cargo – é a exibição pública permanente da sua própria pessoa, como se a sua pessoa fosse em si mesma uma ideia, e aquela mania quase patológica de nos assegurar que, quando queremos, somos os “melhores do mundo”, como se um puro acto de vontade – o querer – tivesse o mágico condão de nos transportar para a realização dos nossos desejos. Marcelo, aparentemente, acredita na omnipotência do pensamento, na ideia de que o próprio pensamento, sem necessidade de mediação alguma, pode directamente agir de modo eficaz sobre a realidade.
Por mim, aconselhava-o a reler a polémica célebre entre Eça de Queiroz e Pinheiro Chagas em torno do patriotismo, nomeadamente aquela passagem em que Eça distingue duas formas de patriotismo. Uma delas é aquela que vive exclusivamente da lembrança das glórias passadas e canta à pátria “lânguidas serenatas”. É o patriotismo que “sobe à tribuna do Parlamento ou ao artigo de fundo, e de lá exclama, com os olhos em alvo e o lábio em luxúria: Oh pátria! Oh filha! Ai querida! Oh pequena! Que linda que és! – exactamente como tinha dito na véspera, no restaurante Mata, a uma andaluza barata”. A segunda forma de patriotismo, aquela que Eça aprova, parte de uma atitude crítica. Preocupa-se com a verdade. Os patriotas, segundo Eça, não “adulam” a pátria, “não a iludem: não lhe dizem que é grande porque tomou Calecute, dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal”.
Não pretendo que o Presidente pertença exactamente à primeira escola de pensamento, apostada na permanente recordação de passados gloriosos. De facto, quando Marcelo fala do passado até encontra geralmente um tom justo. Mas propõe uma variante dela projectada para o futuro. Propõe uma espécie de voluntarismo igualmente acrítico e estranhamente destituído de justificação empírica: como se, por um puro acto de vontade, todas as nossas potencialidades escondidas pudessem plenamente realizar-se à plena luz do dia. Quando queremos, como ele diz, somos os melhores do mundo, maiores do que todos os outros. E que povo, podendo tal, não desejará participar de tal feito?
O problema de tão mágica convicção é que, ao contrário de suscitar entusiasmo, nos mergulha, sem paradoxo nenhum, na indiferença, de que só uma atitude crítica nos poderia talvez salvar. É um patriotismo triste, um patriotismo tristíssimo, aquele que o Presidente nos sugere. E um patriotismo que nos torna vulneráveis aos delírios ideológicos que, por exemplo, nos levam a morrer em obediência aos princípios de uns quantos iluminados. E são estes os dias de Portugal, dias de indiferença e desmazelo trágico, que o último Dia de Portugal não contribuiu em nada para melhorar.