Quando acaba a guerra? Esta é a pergunta que me fazem com compreensível insistência. Sobretudo depois do alarme global com o risco de escalada e alargamento da guerra causado pela morte trágica de dois civis num país membro da NATO, a Polónia. Se olharmos para os padrões da história não vemos sinais dum fim eminente da guerra. Um conflito prolongado tende a tornar mais difícil uma paz negociada, veja-se o caso da Primeira Guerra Mundial. O acumular de mortos e destruição exigem uma vitória. Isso é mais assim numa democracia do que num regime autoritário como o de Putin, que tem mais margem para ignorar a opinião pública, mas nem a Rússia, nem a Ucrânia dão sinais de considerarem esgotada a via militar para atingir as suas prioridades. Um cessar-fogo não é impossível, mas uma verdadeira paz parece difícil. Apesar de tudo há sinais encorajadores de que o Ocidente e as principais potências globais querem um conflito limitado e, sobretudo, querem evitar a todo o custo uma escalada nuclear.

Mortos na Polónia e o risco de escalada

Vimos esta semana com o caso trágico da morte de dois civis polacos um exemplo prático de como a guerra é por definição o reino da incerteza e do imprevisível. Aparentemente tratou-se do resultado do impacto de um míssil S-300. Como acontece com muitas outras armas usadas neste conflito, é um sistema de origem russo-soviética, mas é usada pelos dois lados. Os russos utilizam-no inclusive para ataque ao solo, na falta de melhor alternativa. Os ucranianos usam-no na defesa antiaérea, na falta de sistemas ocidentais mais avançados em precisão e eficácia, e com a informação disponível presentemente parece ser essa a origem deste incidente.

Apesar de termos aqui um exemplo paradigmático do nevoeiro ou fumo da guerra, para usar o conceito clássico de Clausewitz, desde o início que me pareceu que havia indícios fortes de que não se tratava de um ataque deliberado à Polónia, pela localização do impacto numa zona rural remota muito próxima da fronteira. Mas a incerteza em torno do sucedido foi suficiente para causar justificado alarme global.

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O uso e abuso irresponsável pela propaganda da Rússia de todo o tipo de desinformação e de uma retórica muito agressiva tornam ainda mais compreensível o receio global de uma escalada descontrolada. Ora uma Terceira Guerra Mundial, entre os EUA e aliados e a Rússia, resultaria num choque armado entre as duas maiores potências nucleares globais, com a capacidade de destruir toda a vida na Terra. Felizmente, os países da NATO adotaram uma postura de grande contenção e rigor, fiéis à natureza defensiva da aliança e à sua doutrina de resposta flexível e proporcional. Foi assim desde o início deste conflito, e mais uma vez neste incidente. A Rússia recusou, como sempre, reconhecer que a responsabilidade última do que sucedeu lhe cabia a ela, pois sem invasão e, sobretudo, sem bombardeamentos russos indiscriminados junto das fronteiras da Ucrânia estas mortes certamente não teriam acontecido. Moscovo apostou no habitual recurso à desinformação, neste caso apontando o dedo a um desejo de escalada pelo Ocidente que esteve manifestamente ausente. A Ucrânia pediu, legitimamente, para ser envolvida nas investigações, mas fez mal em se deixar cair na tentação de negar qualquer responsabilidade antes de apurados os factos.

O Mundo não quer uma escalada – a derrota da Rússia no G20

Apesar de tudo, este incidente trágico, no meio de uma invasão sangrenta, veio confirmar que do lado da NATO há um forte compromisso em ajudar a Ucrânia e proteger os países membros, mas sempre com o cuidado em evitar uma escalada descontrolada. A Ucrânia, naturalmente quer o máximo de apoio e envolvimento de aliados que a ajudem a derrotar esta invasão russa, mas também não tem interesse numa Terceira Guerra Mundial que seria, provavelmente, o fim de todos nós. A Rússia é culpada não só da invasão, mas também de uma escalada retórica, nomeadamente com ameaças ocasionais de recurso a armas nucleares, e do constante recurso à desinformação que torna muito difícil perceber as suas reais intenções.

A reação alarmada do Kremlin a este incidente parece mostrar, no entanto, que, apesar da escalada retórica, a Rússia não tem a mínima vontade de escalar o conflito, pelo menos não no sentido do seu alargamento aos países da NATO. É, aliás, lógico que assim seja. Moscovo já tem tido dificuldades militares suficientes sem o envolvimento militar direto dos poderosos Aliados ocidentais da Ucrânia, que a desinformação russa diz que já se verifica, mas que o Kremlin sabe muito bem não ser verdade, e dever ser evitado.

Felizmente também temos tido sinais crescentes de pressões globais – por exemplo da China, que se tornou a única bóia de salvação económica indispensável para Rússia – sobre o Kremlin para haver garantias de que não haveria escalada para o recurso a armas nucleares. O líder da China, Xi, enfatizou a necessidade de evitar o recurso a armas nucleares nos seus recentes encontros com Scholz da Alemanha, e com Biden dos EUA.

Deste ponto de vista, a Cimeira de Bali do G20 foi uma derrota diplomática importante para Putin e uma vitória para quem está preocupado com uma escalada da guerra. Ao contrário do que tenho lido e ouvido, a declaração final do G20 é a mais firme condenação duma grande potência que esta organização, de que a Rússia faz parte, e que representa mais de dois terços da economia e da população mundial, alguma vez fez. Vale a pena ler o texto, em que a maioria dos líderes dos G20 remete e cita a resolução da Assembleia Geral da ONU, de Março deste ano, que condenou “veementemente a agressão da Federação Russa contra a Ucrânia e exige a sua retirada completa e incondicional do território da Ucrânia.” Depois acrescenta: “O uso ou ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível” bem como “a época em que vivemos não deve ser de guerra.” E para quem ache que isto é só o Ocidente e amigos, recordo que esta última frase é ipsis verbis aquilo que Modi, o líder da Índia, uma das maiores potências do Sul Global, disse a Putin no seu encontro recente em Samarcanda.

É possível, portanto, que tenhamos uma guerra prolongada, mas limitada. Ou seja, temos razões para acreditar que o risco de escalada, nomeadamente nuclear, é hoje mais reduzido do que no passado. Não quero com isto desvalorizar os riscos que ainda corremos, fruto inevitável da imprevisibilidade de uma guerra. Menos ainda desvalorizo a tragédia humana em curso com, no mínimo, muitas dezenas de milhares de mortos e com milhões de deslocados ucranianos. Mas quando analisamos uma guerra estamos, por definição, no reino do mal menor e uma guerra limitada é um mal menor quando a alternativa poderia ser a escalada para uma Terceira Guerra Mundial. Isto também não significa, evidentemente, que se deva deixar de apoiar a Ucrânia no seu direito de legítima defesa. Uma reação proporcional ao sucedido seria exigir da Rússia garantias de que não fará ataques aéreos junto das fronteiras da NATO, e reforçar os meios de defesa aérea da Polónia e da Ucrânia.