Esta semana ficou marcada por conversações inconclusivas entre a Rússia e os Estados Unidos e a Rússia e a NATO quanto à “crise da Ucrânia”. Escrevo entre aspas, porque se trata, essencialmente, de um escalada da ameaça do uso da força da parte de Moscovo que tem muito mais a ver com a sua posição no sistema internacional do que com qualquer instabilidade na fronteira com Kiev.
Os cerca de 100.000 soldados na fronteira da Rússia com a Ucrânia são a árvore que nos está a impedir de ver floresta. Washington e Moscovo estão a negociar um entendimento que se pretende duradouro e apaziguador. O Kremlin quer restaurar a área de influência que perdeu em 1997 e a Casa Branca quer uma Rússia satisfeita que lhe deixe espaço para travar a sua luta de transição de poder com a China.
Todo este quadro teve início em junho do ano passado na Cimeira de Genebra, quando Joe Biden e Vladimir Putin se encontraram pela primeira vez. Aí, o presidente americano concedeu ao homólogo russo o estatuto de grande potência, o que significa, em linguagem diplomática, o reconhecimento de um estatuto especial a um estado – o poder de participar nas decisões internacionais – e o direito desse estado de estender a sua influência, especialmente na vizinhança próxima. Aquilo a que normalmente chamamos “esferas de influência”.
Putin percebeu que tinha uma janela de oportunidade para negociar. Esperou por um momento de fragilidade do presidente norte-americano – que eventualmente chegou com a descida abrupta da sua popularidade devido à saída atabalhoada do Afeganistão, bem como com o adensar de problemas internos – e apostou tudo. Deslocou as tropas para a fronteira e apresentou dois documentos que quer ver assinados pelos parceiros atlânticos. Esses documentos são, sobretudo, ultimatos: a paz nas fronteiras depende de exigências hiperbólicas, como o congelamento definitivo do alargamento da NATO e o recuo das forças e dispositivos militares da Aliança Atlântica para onde se encontravam antes do primeiro alargamento, em 1997. E, para não restarem dúvidas da seriedade com que Moscovo leva estas exigências, Sergei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros, intimou o Ocidente a responder durante a próxima semana se quer evitar uma escalada na fronteira. Independentemente do resultado destas negociações, a Rússia conseguiu criar a ilusão de que é o elo mais forte e que a NATO está encostada a uma parede da qual não pode sair sem ceder às exigências do Kremlin.
Não é exatamente assim. Os Estados Unidos – e não tenhamos dúvidas de que quem está a negociar com a Rússia são os EUA – não deixaram, de um dia para o outro, de ser uma grande potência. Se é certo que em condições sistémicas como as atuais, de transição de poder, poderá ter de fazer cedências (não me admirava que sacrificasse a Ucrânia, por exemplo), mas não tantas que ponham em causa o seu sistema de alianças e de segurança. Washington não pode ceder a ponto de parecer um ator internacional fraco e incapaz de conter uma potência regional como a Rússia.
Este duelo tornou-se um braço de ferro, em que ambas a potências têm muito a perder – ou a ganhar. A Rússia é um gigante com pés de barro, mas com vontade política para fazer valer as suas exigências – nem que seja pela força. Os Estados Unidos são uma superpotência fragilizada, mas que precisa de fazer a quadratura do círculo: garantir aos aliados que não os deixa cair num momento tão delicado, apaziguar Moscovo num momento em que Kremlin sente que pode conseguir o que há poucos anos era impossível, sem para isso perder o prestígio internacional que precisa para fazer face à China.
Este é mais um episódio das grandes mudanças sistémicas que estamos a passar. Mas um que vai ditar a forma do quadro de segurança na Europa. Diz-nos muito, mas simultaneamente mostra o quanto somos impotentes relativamente ao nosso futuro.