Volvidos três meses de guerra, começam a revelar-se fissuras no Ocidente. Antes de mais, vale a pena dizer que, em democracia, nada mais natural que desacordos. Grave só quando não são ultrapassados e nada indica verdadeiramente que os impasses se manterão. No entanto, faz sentido chamar a atenção para três problemas específicos que estão a ter impacto na tomada de decisão europeia.

O primeiro é, digamos assim, home-made. Refiro-me à perceção da ameaça. Há uma linha da frente composta pelos países que fazem fronteira com a Rússia e a Ucrânia que estão dispostos a ir muito mais longe na defesa de Kiev e na dissuasão de Moscovo no que respeita a tentações fora de área. Como referido a semana passada, estes países (nos quais se incluem a Finlândia e a Suécia) têm uma perceção muito mais aguda dos riscos que correm caso a Ucrânia perca a guerra. Aliás, sabem que seja qual for o resultado – exceto se a Rússia perder de forma contundente, o que é bastante improvável –, esta não será a última guerra de Putin. E a única forma de se defenderem é uma fortíssima dissuasão. Isto acaba por contrastar com a posição de líderes da Europa mais ocidental (e continental) que ficariam satisfeitos com uma “solução Kissinger”. Já lá voltaremos.

O segundo problema está relacionado com os “Homens Fortes” da União Europeia e da NATO. Victor Orbán e Recep Tayyip Erdoğan têm trabalhado ativamente para boicotar os esforços das duas organizações. O presidente húngaro tem conseguido empatar o sexto pacote de sanções, especialmente através da recusa em parar a importação de petróleo russo até ao fim do ano. Já o presidente da Turquia, usando a sua já longa animosidade relativamente à Suécia, trava o alargamento da NATO. É provável que ambos venham a ceder. Mas a verdade é que os une (e a Putin, o “arquétipo”, segundo Gideon Rachman) a condição de terem ganho eleições e terem transformado os seus regimes em versões muito mais autoritárias. Estes líderes não têm escondido uma certa preferência por Putin – que lhes terá dado garantias de segurança – e Erdoğan não quer perder o papel de mediador que tem tido no conflito, quando voltar a ser debatida a paz. Por outras palavras, há, efetivamente, uma ligação informal entre estes líderes que, sem abandonarem as organizações a que pertencem, tentam transformá-las por dentro. Está à vista de todos, e as eleições francesas foram disso testemunho preocupante, que podem surgir situações semelhantes noutros países europeus e nos Estados Unidos.

O terceiro problema, e porventura o mais importante, é a eficácia da propaganda russa no Ocidente. Françoise Thom explica muito bem o processo num artigo publicado recentemente. Há da parte da Rússia uma “ofensiva mediática” através de proxys nos órgãos de comunicação ocidentais que defendem, permanentemente, três ideias. Que foram os Estados Unidos que provocaram esta guerra e que Moscovo teve de reagir às provocações dos EUA e da NATO para garantir a sua segurança; que a Rússia terá de sair deste conflito “sem perder a face” – o que implica a cedência de território ucraniano à Federação Russa; caso contrário Moscovo não hesitará em usar armas de destruição massiva, nucleares de necessário, para sair deste conflito vitoriosa.

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Esta narrativa é falsa. Por muito que se repita que a NATO “humilhou” a Rússia, isso não passa a ser verdade. Moscovo, com a sua mentalidade de cerco, poderá ter interpretado um conjunto de políticas ocidentais – e.g. alargamento da NATO, intervenções nos Balcãs – como “provocações” ou “humilhações” desnecessárias. Não foram. Foram opções políticas que fizeram sentido na altura. Aliás, a NATO foi suficientemente cautelosa para não deixar a Geórgia e a Ucrânia aderirem à organização em 2008, apesar da proposta de George W. Bush. E a hipótese não se voltou a colocar desde essa altura, nem mesmo depois da anexação da Crimeia. Não houve provocação. Se alguma coisa houve foi inação perante a agressividade crescente da Rússia.

Relativamente à saída de Putin desta guerra, não devia ser uma preocupação ocidental. Não houve um único dia desde 24 de fevereiro que Putin, Lavrov, Peskov ou outro dignatário russo não acusassem o ocidente de alguma coisa. Muitas dessas acusações foram falsas ou imprecisas. Mas se precisam de mais motivos, façam o exercício ao contrário: que contemplações teria a Rússia perante a derrota de um país ocidental num conflito que a envolvesse indiretamente?

Finalmente a ameaça nuclear, relacionada com o ponto anterior: se Putin não perder a face, ou seja, se a Ucrânia aceder à perda de território para que Moscovo se torne um revisionista satisfeito, não temos de temer o uso de armas nucleares. Quanto a este assunto, gostaria de lembrar o seguinte: a principal função das armas nucleares é dissuadir. Putin sabe que se as usasse teria retaliação imediata e esta é a maior garantia de que não o vai fazer, pelo menos em grande escala. Mais uma vez se lembra aqui que podemos não perceber, e devemos não aceitar as motivações do Kremlin para esta guerra. Mas que há uma racionalidade russa que é expansionista e não suicida. Mas convém a Moscovo que o Ocidente pense que se trata de irracionalidade. Interessa que o Ocidente tenha medos desnecessários, que lhes toldem as decisões.

A verdade é que através destas três fissuras temos deixado Moscovo definir os termos diplomáticos desta guerra. A argúcia da propaganda russa e dos seus aliados tem paralisado, em determinados aspetos, a tomada de decisão, nomeadamente no que respeita ao futuro da segurança europeia. Se voltar a haver cortina de ferro – o que é provável – que seja o Ocidente a ditar os seus termos. Caso contrário, esta será apenas mais uma sequela do imperialismo russo que, vitorioso, continuará a sua expansão. Se no passado havia o argumento da integração, este caiu por terra. Lavrov já declarou que a Rússia não pertence à Europa. E é com esta ideia, e desconstruindo a propaganda que nos divide e nos constrange, que temos de olhar para o futuro. É, ao contrário do que se tem dito, o que prescreve a prudência política.