Ontem a Guerra na Ucrânia atingiu os 100 dias, sem fim à vista. Está longe de ser uma guerra longa – até agora – mas sendo um conflito que não fazia parte dos nossos cálculos, que prende toda a nossa atenção, e transmite um sentimento de insegurança relativamente ao futuro, estes mais de três meses parecem intermináveis. Já transformaram a Europa, a nossa perceção da Ucrânia (e para alguns, mais iludidos, da Rússia) e já nos fez perceber que o mundo, o nosso mundo cheio de ilusões de paz, não voltará a ser o mesmo.

Um dos desenvolvimentos mais importantes desta semana foi o artigo publicado pelo presidente dos Estados Unidos no New York Times. À primeira vista, serve para dirimir a neblina que se gerou à volta do papel dos Estados Unidos na guerra. Algumas confusões relativamente ao envio de armamento – e que tipo de armamento – e às possíveis reações da Rússia, levaram Joe Biden a escrever sobre a posição exata da América neste conflito. Mas mais importante, este artigo é também uma resposta a Henry Kissinger.

O antigo secretário de Estado de Richard Nixon continua a ser uma das vozes mais respeitadas entre as elites da política externa norte-americana. De Davos, a semana passada, Kissinger argumentou que a Guerra na Ucrânia deveria terminar à mesa das negociações o mais rapidamente possível. Na sua ótica, Kiev tem de reconhecer perda de território, caso contrário, o conflito tenderá a ser duradouro. Subentende-se que Kissinger acredita que o desfecho da guerra está traçado. Subentende-se também que acredita que a superioridade militar da Rússia é intransponível, que receia um prolongamento do conflito à custa do tesouro norte-americano e europeu, e que, em última análise, desconfia que Putin pode ter a tentação de usar armamento de destruição maciça na Ucrânia ou que a guerra se alastre a território da NATO.

Desde já, importa dizer que esta posição não é anti ucraniana. Há muito boa gente que a defende e não inteiramente sem razão. A Rússia tem conseguido avançar no terreno do leste da Ucrânia apesar dos fracassos da decapitação de Kiev e do cerco à capital pelas forças do Kremlin. E as perdas de vidas humanas, bem como a destruição do território ucraniano, têm levado cada vez mais vozes a levantarem-se a favor da paz a qualquer preço.

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Mas Joe Biden veio escrever publicamente que não é assim. Diz que está ciente que as negociações de paz decorrerão consoante o momento do conflito em que ocorrerem, e que os Estados Unidos querem no futuro uma “Ucrânia democrática, independente, soberana e próspera, com os meios para conter e defender-se de futuras agressões”. Para isso, os Estados Unidos estão dispostos a fornecer armamento e munições desde que – primeira linha vermelha, esta dirigida à Ucrânia – estes não atinjam território russo.

Mas mais importante, o presidente norte-americano usa a expressão “nothing about Ukraine without Ukraine”. Esta frase tem duplo significado: por um lado, os EUA “não procuram uma guerra entre a Rússia e NATO” ainda que marquem a linha vermelha relativamente à Rússia no que respeita ao uso de armamento nuclear, mas também recusam fazer qualquer pressão sobre a Ucrânia para que esta se sente à mesa das negociações. Esse momento chegará – subentende-se, mais uma vez – quando Kiev decidir, por exaustão da guerra, ou por ganhar vantagem territorial que lhe permita chegar ao status quo ante bellum. Esta posição põe o acento tónico no que a Ucrânia já conseguiu: dissuadir a Rússia dos seus planos iniciais de decapitar o regime ou tomar Kiev e ter impedido, até agora, que Moscovo ganhe a guerra, o que há três meses parecia impossível. É também a assunção do compromisso de manter ativo um exército que sem o apoio financeiro e militar dos Estados Unidos e a Europa provavelmente já teria perecido. E aceitar que o conflito se pode perlongar no tempo.

Mas a questão mais profunda é que a hipótese Kissinger, mais segura, e a hipótese Biden, mais arriscada, preconizam papéis diferentes para a Ucrânia – e a Europa, por arrasto – no pós-guerra. A Ucrânia de Kissinger voltará a ser um estado tampão entre a Rússia e a Europa; a Ucrânia de Biden é a parte da comunidade transatlântica. Com a Ucrânia de Kissinger há apoio; com a Ucrânia de Biden há um compromisso.

A guerra é volátil em muitos aspetos, inclusivamente no que respeita a posições políticas. Dentro de meses a ideia de Biden poderá ser insustentável pelas mais diversas razões, incluindo por falta de apoio da opinião pública ou do Congresso, que tem o papel de aprovar os pacotes de ajuda a Kiev. As fissuras na Europa, sobre as quais escrevi a semana passada, podem adensar-se. E a Ucrânia, por mais apoio que tenha, pode efetivamente perder a guerra. Mas uma coisa é certa. Kissinger, Biden e os apoiantes de cada uma das posições não debatem apenas o desfecho da guerra. Debatem o futuro das fronteiras de segurança da Europa. Estamos em fase de escolhas muito difíceis. Esta é só uma delas.