Antes de qualquer transferência social, a população em risco de pobreza atinge os 43,3% (2021). Note-se bem a escala: antes do pagamento de pensões ou de apoios do Estado, perto de metade da população portuguesa está em risco de pobreza, com rendimentos mensais inferiores a 551 euros. Após as transferências relativas a pensões, a percentagem desce para 21,5%. E se contabilizarmos todas as transferências sociais, a percentagem fica nos 16,4%, que é o valor oficial do indicador “risco de pobreza”. Ou seja, mesmo após os apoios do Estado, há um em cada seis cidadãos nessa situação.

Em Janeiro deste ano, na divulgação deste indicador oficial, o governo qualificou os números de “históricos”, pois caracterizam “a maior redução de sempre, no espaço de um ano, da taxa de risco de pobreza em Portugal”. A preferência pela propaganda fere os olhos. Sim, esta percentagem de 16,4% (referente a 2021) é inferior à de 2020, annus horribilis da pandemia, que estava 2 pontos percentuais acima (18,4%). Só que a ministra Ana Mendes Godinho não disse que, em 2020, a taxa de risco de pobreza havia tido o maior aumento de sempre, no espaço de um ano: era 16,2% (2019), subiu para 18,4% (2020) e desceu para 16,4% (2021). Assim, o que o governo celebrou em loas de auto-elogio foi uma taxa de risco de pobreza em 2021 que, afinal de contas, regressou a índices pré-pandemia e mesmo assim ficou acima da de 2019.

Enfim, esqueçamos a estratégia de comunicação viciada do governo e olhemos para o diagnóstico (não-referido e inquietante) que aparece nesta série de dados: a população portuguesa está cada vez mais dependente do Estado para escapar à pobreza.

Em 2003, antes de qualquer transferência do Estado, a percentagem da população em risco de pobreza (41,3%) era inferior à de 2021 (43,3%) em 2 pontos percentuais — com todas as transferências, a taxa de risco de pobreza oficial de 2003 foi 20,4% (superior à de 2021 em 4 pontos percentuais). Ou seja, entre 2003 e 2021, aumentou a população inicialmente em risco de pobreza. Não foi só em 2003, primeiro ano com dados comparáveis, pois a tendência confirma-se nos anos seguintes e prolonga-se até ao período do ajustamento financeiro. Por exemplo, em 2010, antes das transferências do Estado, havia 42,5% da população em risco de pobreza, valor inferior ao de 2021 (43,3%) — mas, após as transferências sociais, os indicadores oficiais foram 18% em 2010 e 16,4% em 2021.

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Para quem se baralha com os números, aqui vai a tradução na forma de duas constatações e uma conclusão. Primeira constatação: ao longo dos últimos 20 anos, aumentou o número de portugueses que, pelos seus próprios meios, ficaram em risco de pobreza. Segunda constatação: foi o reforço da intervenção do Estado, através de mais pensões e apoios, que fez baixar as taxas de risco de pobreza. Conclusão: por via desses dois movimentos (mais pessoas em risco e reforço dos apoios), há hoje mais portugueses directamente dependentes dos apoios do Estado para fugir à pobreza.

O bom-senso recomendaria que algo está errado na estratégia de combate à pobreza quando se verifica que há hoje mais população dependente do Estado para não cair na pobreza do que há cerca de 20 anos — afinal, o objectivo das políticas públicas é que a percentagem da população necessitada de apoios seja menor, em vez de maior. Infelizmente, a má notícia não surge como uma surpresa. Portugal está a empobrecer comparativamente aos restantes países europeus, tem uma economia estagnada e uma cultura dominante que é avessa às empresas e ao lucro. Por isso, não vale a pena ter ilusões: haver mais gente em risco de pobreza é uma consequência lógica das escolhas políticas do país nos últimos 20 anos.

Portugal enfiou-se num círculo vicioso onde as opções políticas geram empobrecimento e, por sua vez, o combate à pobreza gera maior dependência da população nos apoios do Estado. As últimas semanas mostraram como esse círculo vicioso permanece imparável: por um lado, o governo perseguiu empresas e denunciou os seus lucros; por outro lado, as medidas do governo na Habitação ou na Alimentação (IVA Zero) apenas reforçam a dependência da população mais frágil nos apoios do Estado. Tem tudo para correr mal, sobretudo agora: num contexto em que os preços sobem, as necessidades crescem, os bancos implodem e o Estado não consegue dar resposta a todos, Portugal será cada vez mais um multiplicador de pobres.