No passado dia 3 de Maio, em conferência de imprensa especialmente convocada para o efeito nos passos de S. Bento, o líder parlamentar do PS, acompanhado de duas deputadas socialistas, anunciou, com pompa e circunstância, que o grupo parlamentar do PS ia reapresentar o projecto de lei de despenalização da eutanásia, em particular respondendo ao veto político do Presidente da República.

Segundo o líder parlamentar do PS, essa reapresentação iria ser feita rapidamente, “porque o processo já passou todas as etapas necessárias para voltar a ser apresentado na generalidade”, que contavam que “o mais rapidamente possível este diploma possa ser votado na generalidade” e que gostariam que até Setembro ocorra a votação final global, para o processo terminar o mais rapidamente possível.

Mais disse que “Nós não vamos ultrapassar todas as fases que são necessárias, assumindo, contudo, que todos sabemos que este projecto de lei, não só pelo processo de consensualização (…) mas também pelo alargadíssimo processo de auscultação da sociedade civil que já foi feito durante muito tempo, este projecto está em condições muito provavelmente de baixar à especialidade e de rapidamente poder voltar para uma votação final global”: “Nós não vamos seguramente agora voltar a repetir processos que seriam perfeitamente redundantes (…), nós vamos repetir o processo do ponto de vista legislativo, mas vamos naturalmente aproveitar todo o acervo de auscultação que este processo já tem nas últimas três legislaturas”.

Sem prejuízo de desconhecer a que terceira legislatura se queria referir o líder parlamentar do PS (eu só conheço duas em que este assunto foi tratado, a XIII e a XIV)) e de provavelmente este assunto ser aquele em que os deputados menos acolheram aquilo foi dito no processo de auscultação da sociedade civil (absolutamente nada), a palavra mais utilizada nesta conferência de imprensa foi “rapidamente”, como se a despenalização e legalização da morte medicamente provocada a pedido fosse o assunto mais urgente e importante a tratar nesta legislatura. Rapidamente e em força é o lema do PS em relação à eutanásia.

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Pena que o PS não tenha idêntico sentimento de urgência para, por exemplo, rapidamente garantir que todas as vidas são medicamente assistidas, através da prestação adequada e atempada de cuidados de saúde primários aos cidadãos que deles necessitam. E são tantos os que necessitam e que pedem esses cuidados de saúde primários, mas que não os têm e, por causa disso, morrem antecipadamente sem ser a pedido. E isto sem falar da chocante e inadmissível falta da prestação nacional de cuidados continuados e mais ainda de cuidados paliativos, que não chegam a quase 80% dos portugueses.

Mas a razão por que perco tempo a falar desta conferência de imprensa é por a considerar um exemplo paradigmático de como doravante se vão passar as coisas: o PS, no exercício do seu poder absoluto, agora também no parlamento, diz: eu quero, posso e mando e todos devem obedecer e devem fazê-lo rapidamente! O respeito pelas normas constitucionais e regimentais aplicáveis aos processos legislativos e ao funcionamento da Assembleia da República, seus órgãos e comissões, é um pormenor de somenos importância.

E no que se refere a este concreto processo legislativo, devem ainda os deputados e os portugueses agradecer por o PS não ir ultrapassar todas as fases que são necessárias, só algumas …!

Para além da arrogância e prepotência dos novos Donos Disto Tudo, esta postura do PS revela um profundo desrespeito e desconsideração democráticos pela Assembleia da República, pelos novos deputados e pelos portugueses que os elegeram e pela sociedade portuguesa em geral.

Alguém devia informar o grupo parlamentar do PS e o seu líder que estamos numa nova legislatura, a XV, e que as iniciativas legislativas que foram apresentadas, discutidas, votadas e vetadas na anterior legislatura caducaram com o seu termo (o dia 28 de Março), nada transitando do anterior processo legislativo para o actual, nem o texto consensualizado, nem os pareceres, nem as audições, nem as votações, nem os vetos. NADA. Tudo terá e deverá ser repetido no novo processo legislativo, sob pena de o diploma que resultar do mesmo ficar ferido de morte (o que, pensando bem, até que não é uma má ideia).

Apesar de toda a rapidez anunciada na conferência de imprensa do dia 3 de Maio, só no dia 17 de Maio deu entrada na Assembleia da República o Projeto de Lei 74/XV/1ª (PS), diploma que regula as condições em que os crimes de “homicídio a pedido da vítima” e “ajuda ao suicídio”, eufemisticamente designados por “morte medicamente assistida”, não são puníveis e altera o Código Penal, por forma a que tais condutas criminosas não sejam puníveis quando realizadas no cumprimento das condições estabelecidas na lei.

E, agora sim, rapidamente, no dia seguinte (no dia 18) o grupo parlamentar do PS requereu na reunião de Conferência de Líderes o agendamento potestativo do seu projecto de lei para a reunião plenária do dia 9 de Junho, agendamento esse que foi aceite pelo Presidente da AR.

Sucede que a fixação da ordem do dia requerida pelo PS devia ter sido rejeitada pelo Presidente da AR, uma vez que a mesma viola uma norma do Regimento da AR. Com efeito, nos termos previstos no nº 4 do artigo 62º do Regimento da AR, o exercício do direito (potestativo) à fixação da ordem do dia deve ser anunciado ao Presidente da AR, em Conferência de Líderes, até ao dia 15 de cada mês para que possa produzir efeitos no mês seguinte. Ao não ter sido anunciado até ao dia 15 do mês de Maio, tal agendamento não podia ter sido fixado para o mês de Junho, pelo que a decisão do Presidente da AR é ilegal por violação da referida norma regimental.

Para além de ser ilegal, esse agendamento para a reunião plenária já do próximo dia 9 de Junho é profundamente ilegítimo e antidemocrático, atenta a importância da matéria em causa.

 

E é ilegítimo e antidemocrático na medida em que a intenção subjacente ao mesmo é óbvia: acelerar o andamento dos trabalhos parlamentares, quer na generalidade, quer na especialidade, por forma a que sejam ultrapassadas várias e importantes fases do mesmo, como seja, por exemplo, a emissão do parecer pela comissão parlamentar competente, a emissão de parecer pelas ordens profissionais e demais entidades públicas que devem pronunciar-se sobre o mesmo e, bem assim, a audição da sociedade civil.

Mas, a celeridade que o PS quer imprimir a este processo legislativo é tão mais grave quanto o novo projecto de lei do PS contém relevantes alterações materiais e substanciais, e não apenas meras alterações formais (como errónea mas por certo propositadamente o PS tem dito), sobre as quais as referidas entidades não tiveram oportunidade de se pronunciar no âmbito do anterior processo legislativo.

Essas alterações são as seguintes: (i) o artigo com definições (art. 2º), onde, entre outras, se define o que deve entender-se por “doença grave e incurável”, “lesão definitiva de gravidade extrema” e “sofrimento de grande intensidade”, requisitos determinantes da morte a pedido, conjuntamente com a existência de “uma vontade atual, e reiterada, séria, livre e esclarecida” ; (ii) a eliminação do requisito de “doença fatal” e a sua substituição por “doença grave” (mantendo-se a exigência de “doença incurável”); e (iii) a eliminação total da palavra ou ideia de “antecipação” da morte em todo o articulado do diploma.

No novo projecto de lei do PS são, assim, alterados, relativamente ao texto anterior, vinte e seis dos trinta e três artigos que compõem este diploma. Estamos, sem dúvida, como adiante melhor se verá, perante um novo diploma, não só pelo número de artigos alterados, mas por aquilo que as alterações significam quanto à natureza, âmbito e alcance do procedimento legal e administrativo da morte medicamente provocada.

Na curta exposição de motivos (com apenas quatro parágrafos) do seu projecto de lei, tenta o PS justificar toda esta celeridade, dizendo que este não é um novo processo legislativo e que o mesmo apenas vem responder ao veto político do Presidente da República (exercido a 29.11.2021), clarificando e corrigindo o texto anterior, e desfazendo os equívocos formais do texto vetado na anterior legislatura.

Não é verdade. Para além de este ser, como antes se referiu, um novo processo legislativo iniciado numa nova legislatura e como tal deve ser tratado, o projecto de lei do PS agora apresentado nem sequer responde cabal e integralmente a todas as objecções ou solicitações feitas pelo Presidente da República no seu veto político.

Na realidade, como foi então pedido pelo Presidente da República, os equívocos formais podem até ter ficado desfeitos, com a uniformização em todos os preceitos do conceito de “doença grave e incurável”, decorrente do abandono da exigência de “doença fatal”, ficando assim clarificado quais são as causas do recurso à morte medicamente provocada – “lesão definitiva de gravidade extrema” e “doença grave e incurável” -, mas, ao contrário do que foi expressamente exigido no veto político presidencial, o PS não apresenta qualquer justificação nem para o abandono da exigência de “doença fatal”, nem para a não reponderação dessa alteração substancial. Porque é isso que está em causa, uma alteração substancial.

Deste modo, o PS, ao corrigir uma questão formal do modo em que o fez – optando pela “doença grave” em vez da “doença fatal” -, e sem sequer dar qualquer explicação ou justificação para tal, criou uma nova questão substancial, questão essa que afecta e alarga, de modo decisivo e determinante, o âmbito e o alcance normativo do diploma.

Tal como tive oportunidade de escrever a propósito do novo projecto de lei do BE (no meu artigo intitulado “A obsessão do Bloco de Esquerda com a eutanásia”), aquilo que o PS pretende com esta alteração (como, aliás, já o havia feito em relação ao requisito da “lesão definitiva de gravidade extrema”), é desligar o pedido de morte medicamente provocada do facto que supostamente o caracterizaria e/ou justificaria – o de que a morte em causa, por ser certa ou provável, em virtude da existência de uma lesão ou de uma doença, “apenas” seria antecipada -, deixando, agora, de existir qualquer nexo de causalidade entre uma realidade e a outra.

No projecto de lei do PS, nem a lesão, nem a doença, terão de constituir motivo ou causa provável, e muito menos certa, da morte pedida e, a final, medicamente provocada.

Em coerência com esta alteração substancial, mas invocando um (falso) pretexto de empregar uniformemente o conceito de “morte medicamente assistida”, o PS eliminou totalmente deste projecto de lei a palavra ou ideia de “antecipação” da morte (alterando 25 dos seus 33 artigos), transformando aquilo que inicialmente foi apresentado como um processo de antecipação de morte num processo de execução da morte.

Por essa razão, é que, na eutanásia socialista, a morte não é antecipada, é executada.

O PS mostra, assim e agora, aquilo que verdadeiramente pretende com este diploma, e provavelmente sempre pretendeu: o PS não quer despenalizar e legalizar a eutanásia apenas em casos excepcionais ou especiais, nem quer antecipar a morte, mas permiti-la a todas as pessoas que, manifestando uma vontade e decisão nesse sentido, se encontrem numa das seguintes situações: terem uma lesão definitiva de gravidade extrema ou uma doença grave e incurável.

A “lesão definitiva de gravidade extrema” é definida como “lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiros ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa”; enquanto que a “doença grave e incurável” é definida como “doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”.

A lista de lesões definitivas de gravidade extrema é enorme. Como o é a lista de doenças graves e incuráveis. Ainda assim, quanto a estas, eis alguns exemplos: doenças neurológicas crónicas (ex: Alzheimer e Parkinson), doenças oncológicas incuráveis, insuficiências cardíacas graves (ex: Cardiopatia congénita), insuficiência renal em fase avançada  (hemodiálise crónica), insuficiência respiratória em fase avançada, AVC graves, doença pulmonar crónica obstrutiva, doenças psiquiátricas crónicas sem incapacidade (ex: depressão, stress pós-traumático, transtorno bipolar, esquizofrenia), doenças genéticas graves ainda assintomáticas (ex: doença de Huntington), trissomia 21, demência em fase inicial, fibromialgia, hepatite C, infecção HIV, lupus, atrofia espinhal, imunodeficiências primárias, esclerose múltipla, cegueira, doença de Crohn, entre tantas outras.

E como, de acordo com a definição de “sofrimento de grande intensidade” que consta do diploma, é a própria pessoa que determina que o seu sofrimento é intolerável e podendo este ser, para além de físico, um sofrimento psicológico e espiritual, em bom rigor o requisito da existência de uma situação de “sofrimento intolerável” desapareceu.

Por outro lado, também o requisito de a vontade de quem pede para morrer ser uma vontade séria, livre e esclarecida, será letra morta, pois, na prática, os dois médicos, orientador e especialista (e, por maioria de razão, a Comissão) que vão dar o seu parecer sobre se a pessoa em causa cumpre todos os requisitos previstos na lei, muito dificilmente conseguirão avaliar se a vontade da pessoa é realmente uma vontade séria e livre (e esclarecida), uma vez que não está prevista a avaliação obrigatória por parte de um médico psiquiatra (ou sequer por um psicólogo), podendo, inclusive, os referidos médicos nem sequer vir a ter qualquer contacto com os familiares e amigos do doente, se este não o autorizar, e inclusive com o procurador de cuidados de saúde, caso este tenha sido nomeado.

Como poderão tais médicos avaliar se a pessoa não padece de qualquer doença mental ou está num estado depressivo momentâneo e ocasional? Como poderão avaliar se a vontade declarada de morrer é mesmo uma vontade séria e livre da própria pessoa, e não uma vontade fruto de pressões externas ou de sentimentos de solidão e de abandono?

Em suma, de acordo com o projecto de lei do PS será suficiente, para que a morte de uma pessoa seja medicamente provocada e executada, a apresentação de um pedido nesse sentido por quem se encontre numa situação de sofrimento (físico, psicológico ou espiritual) por si considerado de intolerável, sem que a causa física do mesmo (lesão ou doença) tenha natureza fatal (e muito menos terminal).

As inconstitucionalidades de que padece o projecto de lei do PS são por demais ostensivas, manifestas, evidentes e inaceitáveis.

Um Estado que se baseia na dignidade da pessoa humana e na construção de uma sociedade justa e solidária não pode aceitar que uma pessoa que tem uma lesão definitiva que a incapacita e torna dependente de terceiros seja uma pessoa descartável, nem que um doente que padece de uma doença incurável seja um doente incuidável. Nem o Estado, nem a sociedade podem ou devem desistir de apoiar e cuidar dessas pessoas. Como alguém disse, a morte (alegadamente) por compaixão é a morte da compaixão.

Aceitar que o Estado e a sociedade podem matar alguém, ainda que a seu pedido, com fundamento em que a pessoa tem uma lesão definitiva que a incapacita e coloca dependente de terceiros ou tem uma doença grave e incurável é abrir as portas a um eugenismo social.

Com um SNS em total colapso e num país com baixos salários e reformas miseráveis, sem adequada prestação de cuidados médicos, onde quase 80% dos cidadãos não tem acesso a cuidados de saúde paliativos, e onde, segundo dados recentes do Observatório da Solidão, mais de 70% das pessoas com mais de 65 anos vive em solidão, afectando essa solidão também 30% a 40% da população em geral, incluído as faixas etárias mais jovens, não é difícil antecipar o que aconteceria se algum dia a lei da eutanásia viesse a ser promulgada e entrasse em vigor. Queira Deus que tal venha a acontecer.

E sim, invoco o nome de Deus, pois infelizmente os Homens têm demonstrado não estar à altura das responsabilidades que lhes foram cometidas – a de respeitaram a inviolabilidade da vida humana e a de protegerem as vidas mais vulneráveis e dependentes -.