Nas últimas semanas, a invasão da Ucrânia revelou a alguns portugueses a natureza do PCP e do BE. É estranho ter sido preciso chegar a 2022 para se perceber que o desígnio de ambas as seitas sempre consistiu em demolir o que outrora se designava por “modo de vida ocidental”, e que qualquer tirano que se proponha fazê-lo merece o aplauso assumido da primeira seita ou dissimulado da segunda. Mas a compreensão lenta é um direito dos povos. E esmiuçar esse processo é o nosso dever: o que mudou? O que levou a que os dois partidos comunistas perdessem boa parte do respeito de que inexplicavelmente beneficiavam por cá?

Por um lado, houve a circunstância de o país atacado ser, numa interpretação algo solta, uma democracia europeia, propensa a partilhar connosco aliados e alianças. As semelhanças com Portugal permitiram deduzir a atitude de PCP e BE caso, por absurdo, os invadidos fôssemos nós – e não seria uma atitude especialmente patriótica. Se eles desprezam a Ucrânia por sonhar com a pertença à NATO, é natural que abominem os respectivos membros fundadores e lhes desejem os piores castigos, incluindo um Putin, dois Godzilla ou três meteoritos. Naturalmente em nome da “paz”.

Por outro lado, talvez o mais decisivo, os “media” caseiros por uma vez repararam na inclinação franca ou disfarçada daquela gente por regimes totalitários. E transformaram-na em notícia. E depois em notícias alusivas a trapalhadas legais e éticas, assaz alheias à guerra. E depois na disseminação de uma suspeita: a de que, ao invés do que tantos pensavam, os bandos de leninistas não pairam acima dos mortais nem são pessoas ou instituições especialmente confiáveis. De repente, PCP e BE passaram a merecer pelo menos um bocadinho do escrutínio de que, ao contrário da “direita”, escapavam há décadas. Ao fim da impunidade, eles chamam “perseguição”, embora o termo correcto seja “justiça”.

O que mudou foram principalmente os interesses do PS, que há pouco saiu de eleições com maioria folgada e a expensas da erosão das agremiações à sua esquerda. Se é evidente que os socialistas já não carecem de penduricalhos para governar, é natural que queiram garantir que não voltam a carecer: além de torrar os milhões do PRR, um dos objectivos do PS é aproveitar a deixa para reduzir os penduricalhos a pó, ou quando muito a dois ou três deputados “simbólicos”. O resto, aconselhava uma cantiga horrenda, basta imaginar. Imaginem, só por piada, que a generalidade dos “media”, que genericamente depende do PS para subsistir, recebeu ordens expressas ou tácitas para colaborar no exercício. Com boa vontade, a coisa faz-se.

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Porque é que não se fez antes? Porque, não desvalorizando os excelentes esforços do eng. Sócrates e dos seus empregados, até 2015 o PS não controlava uns 90% dos “media” como controla agora. E porque de 2015 até agora o PS não podia arriscar conflitos com PCP e BE. Agora, é quase inevitável que o PS aspire a engolir em definitivo o eleitorado comunista. E não é improvável que o eleitorado comunista, habituado a engolir o que calha, engula o PS.

Os politólogos, que são os “especialistas” que encheram fugazmente as televisões entre o sumiço dos “especialistas” em Covid e o despontar dos “especialistas” em geo-estratégia, fartaram-se de amanhar explicações para o desastre eleitoral do PCP e do BE. Esqueceram-se de uma, a de que hoje não custa a um comunista votar PS na medida em que, para efeito de assuntos internos e gestão corrente, o PS actual não anda longe do comunismo. A título de exemplo, veja-se a cambalhota do partido face ao 25 de Novembro, que apoiou decisivamente em 1975 e rejeita com certo asco nos tempos que correm.

Com maior ou menor “pragmatismo”, o PS do dr. Soares consagrou-se contra o comunismo. O PS do dr. Costa, do rapaz da TAP e dos pequenitos da JS consagrou-se a favor, com ligeiras – e hesitantes – ressalvas em matérias internacionais (o dinheiro, que dá jeito, obriga ao verniz “civilizado”). A exposição dessas ressalvas, a propósito da questão ucraniana, coincidiu com o turbilhão de 30 de Janeiro e ajuda o PS: enquanto anula os penduricalhos no futuro, apaga as intimidades que com eles manteve no passado. Se o passado é recente, a memória é fugaz.

Em circunstâncias normais, estaríamos a celebrar o plausível desaparecimento da extrema-esquerda, cuja velha e grotesca influência é a principal causa do nosso atraso. Nas circunstâncias vigentes, não se recomenda celebrar nada. Se a extrema-esquerda se esfumar, o fumo é meramente formal. Na prática, a chama da irracionalidade mantém-se acesa em zonas demasiado vastas da sociedade, que o PS não se importará de acolher. E as cinzas serão as do país, bem capaz de se desgraçar sozinho num mundo em combustão. O PCP e o BE perderam. O comunismo não perdeu.