Ando de volta de um calhamaço difícil chamado “Tens de mudar de vida” do Peter Sloterdijk (edição da Relógio D’Água). Sabem como é quando se lê um filósofo alemão. Mas também é verdade que compensa: não há capítulo, por extenso e palavroso que seja, que a certo ponto não me entusiasme. Tenho ido para a Biblioteca de Oeiras, leio um capítulo, tomo nota das ideias principais e assim avanço lenta mas decididamente. Recomendo a leitura a todos.

Topem-me esta pérola: os “charlatães modernos (…) curam todas as doenças com um só remédio (…), têm uma só solução para todos os problemas. A arte das artes consistiu sempre em destilar uma essência, a panaceia, o agente universal, independentemente de se fazer em alambiques físicos ou morais. A destilação produz uma substância simples, um elemento final, ou um acto simples e uma operação final. Quem a tem ou dela é capaz, tudo pode e tudo tem”. Nunca tinha pensado nisto.

Tenho de reconhecer que não estou assim tão longe de ser um charlatão. Para todos os efeitos, creio que há uma só solução para todos os problemas que é a fé que tenho em Cristo. Até quando a confiança que tenho em Jesus não evapora as dificuldades que enfrento, julgo que no futuro assim acabará por acontecer. Mais ainda: comporto-me privada e publicamente de acordo com a ideia de que não somente eu mas toda a gente à minha volta deve aderir à minha crença e, assim, ter todos os seus males resolvidos. Siga: charlatão me assumirei.

A questão é que não serei só eu que posso ser descrito como um charlatão. Quantos de nós não nos comportamos, afinal, de acordo com essa mesma regra de que algo que nos conquistou pode resolver a vida das pessoas à nossa volta? Iria mais longe: quem é que, bem vistas as coisas, não se comporta assim? O fenómeno prevalecente pode até ser o de a maioria ser de charlatães e a raridade dar-se quando alguém consegue o feito extraordinário de não acreditar numa só solução para todos os problemas. Não nos deve surpreender a charlatanice mas a ausência dela, concluiremos com humildade.

Pior do que um mundo cheio de charlatães é a ilusão de que nos livraremos deles. O mais enganado, está-se mesmo a ver, é o que julga que ninguém o engana. Logo, a minha proposta neste texto é simples: a próxima vez que alguém te quiser vender uma solução para todos os males, agradece-lhe mesmo que não lhe compres o produto. A pessoa que se admite enganável presta o serviço que mais se aproxima de combater com eficácia o enganoso.

Num último apelo, diria que um ramo privilegiado da charlatanice é hoje o da política. No sermão da semana passada, dizia a partir dos livros de Esdras e Neemias, no Velho Testamento, que quando parece que Deus manda pouco, são os políticos que parece que mandam mais. E apelava assim à congregação que pensasse duas vezes antes de discutir política com demasiado coração. É normal que em 2023 pareça que o Primeiro Ministro interfere mais na nossa vida do que o Criador. Mas é ilusório. Discutir política a toda a hora parte do tal princípio mono de que a essência das nossas soluções está com os nossos governantes. Que charlatanice miserável, essa de cativarmos os nossos destinos aos parlamentares que nos calharam em sorte.

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