No momento em que escrevo este texto, ou já amanhã, pode a realidade desmentir-me.
Mas nesta exacta hora, analisado o que está em causa, os limites políticos da realidade do divórcio entre a União Europeia e o Reino Unido, a natureza do poder e as características dos muitos protagonistas, começo a suspeitar que o único Brexit possível é um “hard Brexit”.
Para usar uma analogia fácil de entender, não há divórcios suaves. Quanto mais antigo o casamento, mais doloroso o divórcio. Com filhos, património, interesses em comum, mais difícil é. E, confirmada a ruptura, cicatrizes profundas marcam para sempre a alma dos protagonistas.
A UE e o RU estão prestes a separar-se após 45 anos de casamento. Não será uma separação suave – mesmo que venha a haver acordo. A integração entre os sistemas jurídicos, económicos, sociais e até políticos entre as partes é tão ampla e profunda que, apesar dos muitos “opt-outs” (excepções) concedidos ao RU, não existe uma solução óptima que permita falar em saída suave.
O que quer o Reino Unido? E o que quer a União Europeia?
Comecemos pela magna questão: a Irlanda do Norte. A discussão faz-se em torno do chamado “backstop”, traduzível em português como rede de segurança ou simplesmente como um seguro, para o caso de não haver acordo político sobre o futuro acesso do RU ao mercado interno, a participação na união aduaneira e as questões da segurança (na passagem das fronteiras).
Do que se trata? Em Dezembro passado, o acordo sobre o primeiro dos três níveis das negociações de separação entre a União e o RU (saída em si mesma, relações futuras, período transitório), estabeleceu a garantia de que não será criada uma fronteira física (ou virtual) entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Essa garantia vai ao ponto de considerar que se não houver outra hipótese, e para evitar criar por sua vez uma fronteira no Mar da Irlanda (entre a Irlanda do Norte e o resto do país), todo o RU poderá ficar integrado na união aduaneira europeia. Sem prazo.
Oximoro após oximoro após oximoro.
Se houver uma união aduaneira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda e ela não se aplicar ao resto do RU, o DUP, principal partido unionista do Ulster britânico e aliado de Theresa May no governo, opor-se-á. Mas se a união aduaneira e as regras europeias em matéria de mercado interno se estenderem a todo o RU, como parece estipular o acordo de Dezembro e May defende (sotto voce, é certo), podendo prolongar-se indefinidamente no tempo, muitos Conservadores revoltar-se-ão, como defendeu numa ed-op o antigo ministro do Brexit, Davis Davis. Já a alternativa da sua limitação no tempo não é aceitável para Bruxelas, pois não resolve o problema de fundo.
Em suma, como escreveu Boris Johnson, a Comissão Europeia oferece ao governo britânico uma solução binária, entre a ruptura do país ou a cedência – separação ou submissão.
Claro que a ideia é haver acordo sobre o comércio e a segurança. Que acordo é então possível para que o “backstop” possa ser dispensado por supérfluo?
Está aqui em causa o futuro das relações entre o RU e a UE em relação ao qual, pondo as coisas em pratos limpos, ninguém se entende. Há negociações e ideias claras de um e outro lado, mas os obstáculos, considerando até o pouco tempo disponível, parecem intransponíveis. Sem querer esgotar a paciência dos leitores, deixo em forma telegráfica os contornos desses obstáculos:
Theresa May defende o plano Chequers, que inclui um acordo alfandegário em que o RU cobre tarifas em nome da UE, regras comuns na agricultura e comércio, fim da livre circulação de pessoas, garantindo embora que os cidadãos das duas partes possam viajar, estudar e trabalhar livremente nos respectivos territórios. Os mais fervorosos “brexiteers”, como Davis Davis, Rees-Mogg, Steve Baker opõem-se, alegando que o país continuará dependente das decisões europeias.
Tendo o acordo de ser votado no Parlamento britânico, Chequers dificilmente será aprovado. Poderão os trabalhistas ajudar May, face à provável revolta de parte da bancada Tory? É difícil. O partido estabeleceu seis critérios para essa aprovação e só um deles é elucidativo: “O acordo garante os “mesmos exactos benefícios” que temos actualmente como membros do mercado comum e da união alfandegária?” (era assim como se num acordo de divórcio, um dos membros quisesse continuar a ir almoçar e jantar a casa do ex-cônjuge, com este a pagar as despesas).
Será alternativa a opção canadiana apoiada por Boris Johnson? Trata-se de um acordo de comércio livre em que são integrados certos sectores industriais mas não, por exemplo, a livre circulação de serviços (incluindo os serviços financeiros, tão importantes para o RU). Mais limitado do que Chequers no tocante à futura integração entre os dois mercados, vê-se mal como resolveria o problema da Irlanda do Norte. E como a City aceitará um acordo que a prejudique.
O problema do Brexit é ser uma espécie de quadratura do círculo. Mesmo que haja acordo amanhã ao jantar, quando a senhora May se reunir com os restantes líderes europeus, muito ainda terá de passar por Westminster e Bruxelas.
Mas dificilmente o divórcio será suave. Não há divórcios suaves. Sobretudo quando a data está marcada, o relógio continua a bater e ainda nem sequer há acordo sobre a forma de sair de casa.