Já aconteceu nos tempos de Sócrates. A cada notícia das ligações esquisitas do excelso PM, logo um coro de apoiantes indefetíveis se erguia informando que nada estava provado, que eram só suposições maldosas de jornalistas ou de magistrados ressabiados. Então se nada se tinha provado em tribunal, como podiam querer atribuir ao divino governante tais atos?

Hipocritamente reduziam o debate público, o escrutínio democrático e a avaliação e as responsabilidades políticas àquilo que era suscetível de ser provado num tribunal. Antes de se discutir algo sobre Sócrates era necessário haver uma sentença transitada em julgado. E corriam, a cada revelação – que nunca os indignava – a vociferar contra quem a tornara pública, a insultar os meios de comunicação social que a publicavam e contra o ministério público que não a mantivera secreta (até ser engavetada discretamente, presume-se). Tomando-nos a todos como tolos, nem pestanejavam perante as suspeitas gravíssimas que se conheciam sobre Sócrates, que essas não interessavam nada, para depois carpirem infindavelmente por causa de uma (então sim) apocalítica escuta qualquer a que o Correio da Manhã tivesse deitado a mão.

Não nos devemos esquecer destas pessoas. Andam por aí, conhecemo-los, mesmo as que entretanto já renegaram o benfeitor. Regra geral, são coincidentes com as que apregoam que Mário Centeno não mentiu a propósito das suas tropelias com a nomeação da administração da CGD. Além de todos os numerosos talentos que coleciona (quem leu o DN dos últimos dias verificou como fomos bafejados, Deus seja louvado, com o ministro das finanças mais capaz e puro de coração de todos os tempos), Centeno é dono de uma imaginação fabulosa: criou o conceito de ‘erro de perceção mútua’, que será usado em abundância pelos políticos impostores do futuro. Mas enquanto não aparecer nada com o nome de Mário Centeno por baixo, o ministro é um anjinho cândido. E tentarão que nada apareça porque, vejam bem, dizem-nos que se trata de comunicações ‘privadas’ (já com Sócrates também se fartaram de invadir a vida privada do pobre senhor sem razão).

Ora, de uma vez por todas: para avaliar politicamente um governante, ou político eleito ou nomeado, não é necessária nenhuma prova das que resistiria à dúvida razoável dos tribunais e a vários recursos do sistema judicial. E pretender que é, é degradar a discussão política e anular o escrutínio democrático.

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Desde logo porque nem só o que é crime é eticamente e politicamente reprovável, por muito que socialistas entendam que as obrigações éticas que lhes calham são somente respeitar a ‘ética republicana’, que é a lei (lembram-se?). Por outro lado, para uma avaliação política bastam indícios consistentes, comportamentos reportados por várias pessoas diferentes, atos reincidentes, a credibilidade de quem faz as denúncias, a coerência da história, e por aí adiante.

Quanto à privacidade, os políticos têm direito a ela quando, cumulativamente, a) não usam meios pagos pelos contribuintes, b) conversam sobre as notas do filho, o aniversário da prima direita, do presente kinky de dia dos namorados para o cônjuge, ou outro assunto igualmente distante da coisa pública, e c) tratam de outros afazeres que não a sua vida financeira e profissional além-política. Em se tratando de assuntos de governação, há que prestar as contas que forem pedidas, sem inventar birras e não se refugiando num direito insuflado à privacidade.

No caso de Mário Centeno já sabemos: enquanto não se descobrir um papel aromático de cor lilás contendo resquícios do ADN do ministro das Finanças, com a palavra ‘ACORDO’ no cimo e onde Centeno declare explicitamente que queria isentar a administração da CGD de apresentar declaração de rendimentos, uns tantos gritarão até ao fim dos tempos que Centeno não mentiu e não tinha acordo com António Domingues sobre a dita. Como se não chegasse conhecermos metade da conversa, a inexistência de documento escrito onde o ministro claramente desenganava o gestor do ‘erro de perceção mútua’ assim que percebeu tal erro, ou o comunicado inicial do ministério das finanças garantindo que a isenção de declaração não era lapso.

No caso de Sócrates, será parecido. Se não aparecer um vídeo onde afirme sem rodriguinhos que se deixou corromper por todos os que vamos sabendo das notícias da investigação da Operação Marquês, para muitos será sempre um exemplo de cristalina inocência. Digo um vídeo? É melhor dez vídeos, de pessoas idóneas e desconhecidas entre si, porque só um seria certamente desconsiderado como falsificação.

Como toda a gente sabe, os prevaricadores, na política ou no crime, não costumam usar de cuidados para não deixar estas provas. Nem escrever obliquamente, nem falar pessoalmente em vez de por escrito (para mais tarde se negar o que for preciso), nem usar fotocópias vivas em vez de transferências bancárias. As ditaduras também negam as suas atrocidades brandindo a ausência de documentos sobre elas. O massacre de Tian’anmen, por exemplo. Qual massacre? Não há números oficiais de mortos, pelo que as mortes não ocorreram. Simples e limpo.

O PS desde que apanhou o vírus socrático partilha estas ideias insalubres. O BE é e sempre foi sinónimo de desonestidade intelectual. O PCP tem dias, consoante tal ajuda a causa do final marxista da história ou não; e por estes dias, com a CGD, alinha na mentira de Centeno. O Presidente da República nem comento. Cabe-nos habituar-nos e resignar-nos a tantas cortinas de fumo. Ou não.