Alertam os activistas woke para a urgência de um debate sobre reparações. Queixam-se de que outros países da Europa já vão muito adiantados nesse debate, que fazem há anos, e que Portugal se atrasou. Acusam, desse suposto atraso, a permanência ou sobrevivência, entre nós, do espírito salazarista do “orgulhosamente sós”. Sucede que, numa expressão muito portuguesa, tudo isso é treta, por duas razões. Em primeiro lugar porque o debate entre nós já se faz há pelo menos sete anos. O primeiro artigo que eu pessoalmente escrevi sobre esse assunto data de 31 de Maio de 2017, e depois dele escrevi muitos outros, aprofundando o tema ou rebatendo opiniões contrárias. Os meus opositores — e são muitos — também escrevem sobre o assunto há vários anos, como é o caso de António Pinto Ribeiro, por exemplo. Para além disso, o tema tem sido frequentemente debatido em entrevistas e outros programas de rádio ou de televisão.
O debate dura, portanto, há muito. O que acontece é que as conclusões desse debate não têm sido as que os activistas woke gostariam que fossem. Tanto quanto se percebe, as pessoas continuam — e a meu ver muito bem — estanques ou renitentes à ideia de reparações monetárias ou outras. O governo da AD também, felizmente. Para contornarem a frustração que isso lhes causa, os woke recusam-se a tomar consciência desses factos e a aceitar a sua, para já, derrota. Efectivamente, e como confundem debate com concordância com as suas teorias e posições, dizem que o debate ainda não começou. Não põem a hipótese de as suas ideias e intenções não colarem ou não vingarem, coisa que, como toda a gente percebe, é um resultado possível de qualquer debate. Mas os woke recusam-se a admitir essa hipótese. É como se quisessem participar num campeonato de futebol em que lhes fosse permitido invalidar todos os jogos que perderam e todos os golos que sofreram, para só começar o dito campeonato na jornada em que viessem eventualmente a ganhar. A batota é evidente.
Outra batota evidente — e segunda razão pela qual as acusações de supost atraso são treta — é a afirmação de que os restantes países europeus iriam muito mais à frente do que Portugal na questão das reparações. Os que o afirmam têm em mente a Alemanha, a Holanda e também, em certos casos, a França, e fazem desses países a norma. Mas não são a norma. Os woke omitem que não é isso que acontece em países centrais para esta problemática como são a Espanha e o Reino Unido, onde o governo de Sunak permanece estanque à ideia de reparações. Ou seja, propõem-nos jogar um jogo no qual escondem as cartas do baralho que não lhes convêm. Por outras palavras, têm estado a jogar à vermelhinha com a boa-fé dos leitores mais incautos.
Quando falam em debate que supostamente urgiria fazer, o que querem de facto dizer é que urge que a parte contrária — na qual me incluo — aceite como boa a posição que eles próprios defendem. Não querem um debate, querem uma anuência às suas teses e metas políticas. Estes senhores e senhoras não sabem o que é democracia, nem o que é confronto público de ideias. Debater não é anuir, é argumentar e tentar convencer. E os woke, felizmente, têm convencido pouca gente, fora dos que já convertidos membros do seu rebanho. Ou, se calhar, nem esses.
No verão de 2023 dez pessoas woke originárias do Senegal, de Angola, de Portugal e do Brasil, entre as quais os conhecidos activistas Mamadou Ba e Kitty Furtado (Ana Cristina Pereira), reuniram-se no Porto para um encontro dito académico a que chamaram “Oficina de Reparações”. Do dito encontro resultou uma pomposamente designada “Declaração do Porto”, ou seja, um caderno reivindicativo no qual, entre outras coisas, se exigia ao Estado português que formalizasse pedidos de desculpa pela existência, no passado, de escravatura e trabalho forçado; que anulasse todas as dívidas contraídas pelos países colonizados por Portugal e que pagasse indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo; que descolonizasse os manuais escolares, submetendo-os à apreciação de uma comissão formada por pessoas racializadas; que restituisse os objectos museológicos às comunidades colonizadas; que procedesse ao desmantelamento de estátuas e monumentos que os activistas consideram racistas; e que descolonizasse o hino e todos os símbolos nacionais que de alguma forma exaltassem o passado colonial.
Insuflada de entusiasmo militante essa dezena de activistas woke pôs a sua “Declaração do Porto” a circular na internet com vista à recolha de assinaturas. Esperavam, obviamente, uma grande adesão à iniciativa, mas o resultado foi tão escasso, tão aquém das metas dos activistas, que em desespero de causa, em 1 de Agosto de 2023, a activista Kitty Furtado, lamentado que apenas o “jornal de direita Observador” (sic) tivesse prestado atenção à “Declaração do Porto”, e ninguém mais parecesse interessado em pensar sobre o assunto, escreveu o seguinte no seu mural de Facebook: “Onde está a esquerda.net? Onde está o setenta e quatro? Onde se enfiaram os jornais antirracistas todos? E as associações e colectivos antirracistas? O Daniel Oliveira e todas as pessoas de esquerda pensante que têm uma voz pública audível? Tanto podcast, tanta mesa-redonda, tanto live streaming… nada? Ninguém? A ideia não era concordarmos todos (…) a ideia é conversar/debater/discutir. Não há descolonização da esfera pública sem debate e não há debate se não nos envolvermos todos nas propostas uns dos outros. Um dia destes ainda vão dizer que somos nós quem alimenta a extrema-direita. Não camaradas. Quem alimenta a extrema-direita é quem se abstém da conversa, ou a evita propositadamente, deixando a narrativa ser construída apenas por eles. Qual é o vosso problema, têm medo de parecer demasiado radicais? São muito sérios, muito ponderados? Quando chega a hora da verdade, acham sempre que nada se pode dizer assim. Então digam lá: como é que acham que se deve dizer? Vamos falar?”.
Mas este apelo ou desafio não surtiu efeito. Não se ergueram mil vozes de esquerda incomodadas com as opressões do passado e ao fim de um ano de circulação na net a “Declaração do Porto” arregimentou apenas os cerca de 100 signatários do costume. Porém, mais interessante do que a constatação dessa falta de adesão ao apelo woke é perceber que este episódio e a prosa de Kitty Furtado revelam, preto no branco, que os activistas consideram que debate é o eco das suas própria vozes. Não havendo ressonância à esquerda, como não tem havido, acham que não há debate. O debate, para eles, é unicamente o monólogo ou o coro afinado que soe do lado esquerdo do palco; as vozes do outro lado são nulas, não registam nem contam para esse efeito. É por isso que estas insólitas cabeças acham que o debate ainda não terá começado e que Portugal se terá atrasado na conversa por ser nostálgico do salazarismo e gostar de estar orgulhosamente só.