Tinha dito a mim próprio que não iria escrever sobre isto. O tema, por muito que me tivesse deixado a pensar, tinha ganhado atenção q.b. Algumas notícias aqui e ali, mas não ficou muito tempo na agenda mediática. No entanto, e passados alguns dias, volta a surgir, por via de uma estação de televisão e subsequente resposta por parte do visado. É desta que pego na caneta e tento a partir deste caso fazer uma reflexão geral.
Tudo começa quando, dia 14 de fevereiro, André Ventura (sim, mais um artigo a dar-lhe atenção, mas sinto que é preciso) publica nas redes sociais um vídeo intitulado dramaticamente (para variar…) “Professor ofende André Ventura em aula. É este o ensino que temos?”. O vídeo em causa mostra uma aula onde o professor alega que “os meninos do Chega são neonazis”, traçando ligações dos seus membros ao PNR. Não se sabe ao certo se a gravação do vídeo foi ilícita. Dias mais tarde, a propósito de um fact check que confirma a gravação não consentida de aulas como um crime, AV faz um tweet acerca da conclusão que o canal (a sua CNN) faz quanto à ilegalidade do vídeo, dizendo que voltaria a fazer o mesmo (serviu-lhe a carapuça?).
Estamos perante duas atitudes lamentáveis. Por um lado, um professor que é pouco preciso no que diz, sobretudo tendo em conta que, aparentemente, estava a falar para crianças do 7º ano, com pouco discernimento para este tipo de questões e que, por isso, podem tirar daí conclusões precipitadas. A vasta maioria do eleitorado de AV é “fartista”, como bem explicou o deputado Sérgio Sousa Pinto, e não fascista (de direita, pois os de esquerda também existem). Embora, e verdade seja dita, existam infiltrados lá dentro, que inclusive fizeram, no passado, parte de órgãos sociais do partido, acreditando que a confiança política já lhes tenha sido retirada como prometeu o líder. Assim, a falta de cuidado, rigor científico (tão necessário em História) num tema delicado como este, por parte de alguém que ensina, é mau.
Por outro lado, e o que me verdadeiramente motiva a escrever este texto, é a atitude deplorável por parte de um líder partidário. A publicação para uma audiência de milhares de pessoas de uma aula, onde, inclusive, surge a cara e o nome do professor, é um desrespeito total para com o mesmo e a autoridade que detém sobre a sua sala de aula, mesmo que esta seja virtual.
O que mais interessante ressalta em volta deste acontecimento é a gigante ironia que dele transborda. Ora vejamos: o líder do partido cujo programa político (com o qual se candidatou à AR em 2019) se bate por uma política de educação, nomeadamente na alínea j, onde “os professores recuperam totalmente a autoridade perdida sobre os alunos, sendo-lhes devolvidos todos os meios que lhes permitam manter a disciplina nas aulas”, é o mesmo que precisamente a viola, e pior, contribui publicamente para uma normalização das filmagens de aulas online, desde que sirvam os nossos propósitos. Que belo serviço para os professores…
Mais ainda, recomendo ao caro leitor que faça o seguinte exercício comigo: será que, se este ou qualquer outro professor, profetizasse que a permanência de Trump no seu cargo significaria a vitória da democracia (como AV o disse), ou que Biden é socialista e quer impor uma agenda de extrema-esquerda (factos falsos e em que infelizmente muitos acreditam), os apoiantes de AV já se regozijariam com o mesmo? Pois é, double standard é muito chato…
Não posso também deixar de notar que o lançamento deste vídeo, com a consequente exposição pública a que o professor foi sujeito, foi feito pelo líder do partido que recentemente propôs um projeto lei onde, entre outros aspetos, “quem capturar imagens ou vídeos de atuação de forças policiais ou agentes de segurança e as difundir no espaço público é punido com pena de um a três anos de prisão”, além de que “se a difusão tiver, notoriamente, como objetivo incentivar ao ódio contra forças policiais ou agentes de segurança” a pena já aumenta. Curioso. Efetivamente, é quando e como lhe convém, certo Dr. André?
Deste modo, será que o meio justifica o fim? De maneira alguma. Apenas reforça a ideia, já desenvolvida por muitos com experiência e conhecimento político, em que os radicalismos de polos opostos tocam-se. Qual a autoridade moral de AV para criticar o BE? Nenhuma. Ambos estão constantemente à caça de votos e possuem maneiras idênticas de os conquistar.
E mesmo que o Chega e os seus dirigentes ainda não tenham feito o triste espetáculo de mandar um líder internacional “para ao pé do Salazar” ou organizar uma manifestação para o remover, tendo sido democraticamente eleito, está à vista de todos nós que ambos seguem estratégias que em política são inaceitáveis do ponto de vista ético e moral. Um líder político tem responsabilidades acrescidas pelo que faz e diz, na medida em que está a legitimar esses seus atos aos olhos dos seus apoiantes. O mais recente e triste exemplo ocorreu a 6 de janeiro deste ano.
Com efeito, e termino, pois o texto já vai longo para o caro leitor, não vale tudo para chegar ao poder. Embora as declarações do professor não sejam verdadeiras, não nos iludamos: o Chega segue uma linha política de direita nacionalista, do pior que se tem registado nos últimos anos pelo mundo ocidental. Veja-se uma conhecida militante do partido, e mandatária presidencial de AV junto das comunidades portuguesas, Maria Vieira, considerar Donald Trump como o melhor presidente da história dos EUA e abraçar figuras como Nigel Farage, Salvini ou o grande democrata Viktor Orbán. Já para não mencionar que, em conjunto com outras personalidades do partido, como José Lourenço, acredita que as mais recentes eleições americanas foram fraudulentas a favor de Biden. Ah, essas malditas “forças do mal, incarnadas pelos patrões do globalismo e pelos lacaios do marxismo, assim como pelos tiranos da Nova Ordem Mundial”.
Temos, como país, e a classe política em especial, muito trabalho pela frente, sobretudo no debate de ideias, a fim de esclarecer as linhas políticas e propostas concretas e coerentes que se oferecem ao país. O populismo ascendente de direita tem que ser combatido nesse confronto de programas. É imperativo que as forças políticas moderadas consigam voltar a estabelecer uma ligação com quem não se revê com o estado do seu país. Não os podemos perder, não podemos desistir deles. O preço a pagar será demasiado caro. E para evitarmos essa fatura, não devemos embarcar em ilegalizações parvas, que até custa a crer que uma candidata a PR tenha sido uma das suas promotoras.