É mais uma manhã em New Hampshire, estado no nordeste dos EUA. Neil Leveske, diretor do New Hampshire Institute of Politics (NHIOP), entra em cena para testar o microfone. O NHIOP é o instituto de estudos políticos da Saint Anselm College e é um lugar recorrente de passagem para candidatos presidenciais exporem as suas ideias, não fosse New Hampshire dos primeiros estados a votar nas primárias de cada partido.

Microfone testado, Leveske começa por avisar que aquele é um lugar de civilidade, triste sinal de um país engolfado num clima de alta polarização política. Na próxima hora debater-se-á a América, o seu papel no mundo e o seu futuro. Ao contrário do que a introdução deste texto possa ter sugerido, o debate não será entre dois candidatos presidenciais. Bom, um deles é. A conversa será entre Ro Khana, congressista do partido Democrata, e Vivek Ramaswamy, que concorre à nomeação Republicana para as eleições de 2024. Após uma troca de argumentos no Twitter, Khana propôs a Ramaswamy a ideia de um frente-a-frente civilizado em vez da marcação de alguns pontos retóricos online. Desafio aceite, paira uma sensação de raridade (desde logo enfatizada pelo moderador, James Pindell) no ar: a de assistirmos a um debate civilizado entre duas pessoas que estão em desacordo em vários temas, podendo explicar a sua visão para temas complexos em mais de 45 segundos, fenómeno nem sempre alcançável nos debates televisivos.

Khana representa no Congresso o 17º distrito da Califórnia, também conhecido como Silicon Valley, epicentro da tecnologia e inovação nos EUA. Pertence a uma ala mais progressista do partido Democrata, tendo estado na campanha de Bernie Sanders, e apoia a reeleição de Biden. Tendo em conta o seu círculo eleitoral, é interessante o facto de ter uma mensagem apelativa para os trabalhadores do Rustbelt, defendendo um “economic patriotism” que visa, entre outros aspetos, manter os EUA como líder em várias indústrias.

Por outro lado, Ramaswamy é (e faz questão de repetir este ponto várias vezes) um “outsider” da política. Construiu negócios nas indústrias da biotecnologia e dos serviços financeiros, obtendo uma fortuna considerável à qual recorre para financiar parte da sua campanha. Considera que Trump foi o melhor presidente dos EUA neste século. Porque é que concorre então? É preciso, adivinhou, um “outsider”. Em falta de melhores palavras, recorro ao perfil que a revista New Yorker lhe fez no final de 2022: é o CEO da “Anti-Woke Inc” (embora suspeito que tenha concorrência de Ron DeSantis nesse campo).

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Quanto ao debate em si, a troca de ideias foi o que seria expectável ao nível do conteúdo. Ramaswamy pretende desregular e baixar impostos enquanto Khana propõe a reversão dos cortes de impostos de Reagan e Trump a fim de financiar a educação e a saúde. Na política externa, ambos tendem a ser contra incursões militares no exterior, mas distinguem-se nitidamente na influência que os EUA podem ter: Ramaswamy defende uma política isolacionista, a qual Khana apelida de provinciana, argumentando que tal é uma visão pobre para os EUA. Nesta fase do debate transparece com maior evidência uma certa arrogância de Ramaswamy, invocando o seu vasto conhecimento do tema e a sua forma de pensar independente (tradução: os experts não pensem que mandam em mim). Não deixa de ser irónico que proponha um acordo onde, essencialmente, daria território ucraniano a Putin e, ao mesmo tempo, cite uma frase de Reagan do período da Guerra Fria (“Nós ganhamos, eles perdem”) para se referir à China, desvalorizando o contra-argumento de Khana de que uma vitória da Ucrânia funciona como fator de dissuasão para a China no que toca a Taiwan. Afinal de contas, o que é que William Burns (diretor da CIA, que Khana cita) julga perceber. Isto é ter uma atitude de CEO e resolver o assunto. Objetivo do trimestre cumprido? Next.

Por esta altura, o caro leitor denota, e com razão, um texto mais crítico de Ramaswamy do que de Khana. Não subscrevendo tudo o que Khana defende, ao longo desta hora ressalvam mais o oportunismo e cinismo de Ramaswamy (além de muitas ideias suas estarem nos antípodas do que defendo), cuja campanha aparenta estar a perder a força que ganhou após a sua prestação no primeiro debate em agosto. Mas este não é um texto sobre políticas específicas. O que marca este evento é a capacidade de duas pessoas com visões bastante diferentes dialogarem de forma saudável sobre as mesmas, percebendo de onde vêm e tentando encontrar, onde possível, “common ground” (tradução livre: chão comum, expressão que remete para opiniões partilhadas por espaços políticos diferentes). Chão esse que, nos últimos tempos, os americanos não parecem querer construir e que tanta falta faz numa democracia que atravessa um período de turbulência.

Para onde vais, América? É confrangedor ver um partido Republicano entregue à sua ala MAGA, dando protagonismo a figuras como Matt Gaetz, Marjorie Taylor Greene ou Lauren Boebert, que pretendem o caos e não veem utilidade nenhuma no tal chão comum. Note-se, no entanto, que a conjuntura atual não cai do céu: na sequência da eleição de Obama em 2008, a ascensão do Tea Party, dando voz no espaço público a instintos outrora escondidos, contribuiu para a situação atual. Tudo explicado nas memórias de John Boehner, antigo Speaker da Câmara dos Representantes durante esse período, onde explica como o Congresso se transformou numa “Crazytown” (em tradução livre: terra dos malucos). Ao mesmo tempo, a possibilidade de um segundo mandato de Trump arrepia qualquer defensor da democracia. O Washington Post mostrou recentemente como o antigo Presidente planeia instrumentalizar o meio judicial para satisfazer os seus desejos de vingança contra aqueles que o criticaram e, a seu ver, mostraram deslealdade. O plano tem como pilar a instalação de pessoas que não desafiem as suas ordens, tentando ver-se livre da burocracia que, de certo modo, funcionou como um fiel da balança durante o seu mandato. Russ Vought, antigo diretor do Office of Management and Budget durante a Presidência Trump, poderá ser uma dessas figuras obscuras: numa entrevista, considerou que a independência do departamento da justiça não se baseia na lei ou na constituição, pelo que não são precisas mudanças dos estatutos, mas apenas uma mudança de mindset.

Bill Kristol, um ardente conservador americano que trabalhou nas Presidências Reagan e Bush (Pai), e que desde do início foi um “Never Trumper”, recentemente defendeu que, pese embora Republicanos mainstream, como Mitch McConnell e Nikki Haley, não tenham tido coragem no passado para se demarcar de Trump, os seus esforços para trazer o partido de volta para as suas linhas ideológicas originais devem ser apoiados. Resta ver se o monstro que alimentaram não é suficientemente grande.

Naquela manhã de New Hampshire, um pequeno vislumbre de “common ground” pareceu surgir. Se alguma coisa vai mudar no futuro próximo? Não. Se podemos e devemos ter esperança? Sim. As eleições são daqui a um ano, e até lá é lidar com a aflição que seria um segundo mandato de Trump. É uma questão de mindset, já dizia o outro.