Na última semana, tem havido imensa discussão em Portugal gerada pelo súbito acordar de António Costa. Sete anos depois de chegar ao poder, e depois de vários anos à frente da Câmara Municipal de Lisboa, o que dever-lhe-ia dar especiais responsabilidades no estado actual de coisas, o Primeiro-Ministro decidiu fazer da habitação um dos seus cavalos de batalha, apresentando medidas, no mínimo, questionáveis que provocaram um sobressalto cívico acerca da protecção de direitos fundamentais. Aparentemente, António Costa e o seu governo, preocupados que estão com as dificuldades da classe média em ter acesso a casas, lançaram-se na difícil tarefa de montar um plano para resolver o problema. Confesso que não estou minimamente preocupado com os potenciais perigos que o plano gizado pelo Dr. Costa coloca aos direitos fundamentais. O motivo para a minha total displicência para com os perigos do dito plano é simples: sei de ciência certa que o plano nunca passará disso mesmo, um plano. É fácil perceber porquê.

A 23 de Abril de 2018, António Costa fez uma sessão solene em que apresentou a chamada “Nova Geração de Políticas de Habitação”, com o objectivo, de acordo com o site do governo, de “reabilitar as habitações, dinamizar o arrendamento”. Na mesma sessão, Costa reiterou que, sendo uma prioridade no programa de governo de 2015, proceder-se-ia à colocação progressiva de fogos “da Segurança Social no mercado de renda acessível”. Ainda no mesmo ano, o governo aprovou um plano para atacar um problema real e específico: a habitação para estudantes de ensino superior que, deslocados de casa, precisam de encontrar habitação a renda acessível. O chamado “Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior”, apresentado ao lado de Manuel Heitor, com uma duração prevista entre 2018 e 2030 tinha como objectivo, entre 2019 e 2022, a “requalificação de mais de 250 imóveis em todo o território nacional”, com um aumento de 11526 novas camas nestes três anos. No magnífico documento de apoio que o governo disponibilizou encontravam-se já identificados os edifícios onde se instalariam as ditas camas.  No ano seguinte, a 9 de Julho de 2019, António Costa fez, novamente, uma sessão solene, desta vez com Pedro Nuno Santos ao seu lado, apresentando, desta vez, o “Plano de Reabilitação de Património do Estado para Arrendamento Acessível”, com direito a uma apresentação muito bonita, com alguns números e várias figuras que, garantia-nos o timoneiro da pátria Portuguesa, iriam garantir a execução do programa. Nesse dia, o governo traçou uma meta ambiciosa: “até 2024, data em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril, garantir o direito universal à habitação”. Num conselho de ministros uns dias antes, António Costa criou o programa “Arrendamento Acessível”, que determinava, e cito, “a afetação de imóveis do Estado sem utilização ao arrendamento habitacional a custos acessíveis”, que seriam reabilitados mobilizando fundos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, para capitalizar o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado.

À luz do historial deste governo, que apresentou todos estes planos sem que algum deles alguma vez passasse do papel, acho razoável presumir que podemos estar sossegados e nada temer. Pelo que nos é dado a perceber, os programas acima referidos foram anunciados com pompa e circunstância e nada aconteceu, pelo menos que tenham sido relatado na comunicação social. Se os ditos programas tivessem saído de papel, o plano apresentado a semana passada pelo governo seria, em grande medida, desnecessário. De resto, na conferência de imprensa de Costa a semana passada não reparei que este tivesse feito um balanço das iniciativas legislativas anteriores como ponto de partida para as novas propostas. A probabilidade de alguma reforma acontecer desta vez é, claro, relativamente baixa. Os direitos fundamentais dos Portugueses não estão, nem estarão, em perigo.

Se os direitos fundamentais dos Portugueses não estão em risco pela acção do governo, estão-no pela sua inacção. António Costa foi eleito primeiro ministro para gerir o empobrecimento relativo do país de forma o mais pacífica possível. No entanto, em 2023, começa a ser difícil parar o vento com as mãos. O empobrecimento está aqui para ficar e é cada vez mais visível. A habitação é, provavelmente, o maior problema que as famílias enfrentam neste momento.

O plano que Costa apresentou, de resto, não lida com o problema de forma minimamente inteligente. Em primeiro lugar, não faz a questão fundamental: por que estarão centenas de milhares de casas devolutas? Em vez de perceber a raiz do problema, regulá-lo e deixar o mercado funcionar, prefere utilizar a administração fiscal, único meio do Estado que ainda funciona, para substituir-se a políticas públicas sérias. Para além disso, o dito plano mostra que o próprio governo sabe que a justiça simplesmente não funciona. Se os tribunais funcionassem de forma lesta, dirimindo conflitos entre senhorios e inquilinos, não era preciso que o estado funcionasse como fiador, garantindo ao senhorio que a renda é paga enquanto resolve as coisas com o inquilino.  Em segundo lugar, o plano de habitação lida com o problema de forma unidimensional, esquecendo, por exemplo, a questão dos transportes. Não basta pintar os autocarros de amarelo-torrado e colocar o logo da Carris para passarmos a ter uma política metropolitana de transportes. Como Susana Peralta chamou a atenção, a necessidade imperiosa de uma política de transportes integrada, com investimento a sério numa rede de metro, que aumentasse a capacidade para fora dos limites da cidade, contribuiria muito mais para o equilíbrio do mercado imobiliário do que o plano do Dr. Costa. O plano que Assunção Cristas apresentou em 2017, quando concorreu à Lisboa, previa a construção de vinte novas estações de metro a um custo que seria metade daquilo que queimámos alegremente na TAP. Imaginem os benefícios enormes, especialmente para as classes menos abastadas que moram nos subúrbios, se o dinheiro gasto na TAP tivesse ido para melhorar a infraestrutura de transportes.

Por último, o eterno problema do empobrecimento. A integração de Lisboa na esfera económica Europeia é imparável e isso é altamente positivo em minha opinião. O fluxo de pessoas e de ideias só pode ser vantajoso para um país pequeno e provinciano como Portugal. Nas últimas duas décadas, houve uma convergência nos preços entre Portugal e o resto da Europa. Em larga medida, o custo de vida em Lisboa é, neste momento, igual a muitas cidades Europeias como Madrid, Milão, Barcelona e não deixará de ser. O problema central é que, enquanto os preços convergem para padrões Europeus, a produtividade e os salários não, devido, precisamente, à inacção política que uma bela parte do eleitorado Português gosta e para a qual elegeu António Costa. O fechamento do país é impossível. Numa Europa cada vez mais integrada, a autarcia não existe. Ainda bem. A nossa derradeira esperança é que a mudança venha de fora. De dentro, nunca virá.

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