Cerca de 300 anos depois do nascimento de Cristo, a pequena igreja de Mira, na Turquia, estava reunida para orar. A necessidade era urgente: um novo bispo. Os candidatos que tinham surgido eram inadequados e a pequena vila precisava de liderança espiritual. Por isso, oravam. Por essa altura, em alto mar, um navio lutava para se manter à tona de água. A tempestade era feroz. A tripulação valente. Tudo o que era supérfluo foi atirado borda fora. Os passageiros tremiam de medo. O vento arrancava pedaços do casco do navio. Os mastros gemiam. Na turbulência geral alguém grita: “Nicolau! Nicolau!” Havia rumores de que um homem de Deus chamado Nicolau estava a bordo. Na realidade, de uma cabina surge um homem de figura imponente. Segurando-se firmemente à amurada do navio, ele levanta os braços para o céu e começa a orar. Milagre! A tempestade acalma. Os ventos amainam e as ondas serenam. Manco e coxo, o navio entra no porto de Mira. Na Igreja os devotos estavam espantados pela forma como Deus revelava a cada um a mesma visão. O futuro bispo de Mira seria um homem chamado Nicolau. O espanto era genuíno porque não conheciam ninguém chamado Nicolau. Mas a visão era tão nítida! Enquanto o barco inclinado atracava no porto, o homem da oração desembarcava. Imediatamente ele procurou uma igreja na vila para agradecer a Deus a Sua protecção. Encontrada a igreja entrou agradecido. As cabeças curvadas viraram-se para o desconhecido que entrava. O homem ajoelha-se e balbucia tranquilamente uma oração de louvor e adoração. Um dos crentes aproxima-se e pergunta: Como te chamas, irmão? “Nicolau” – foi a resposta.
Pai Natal
“Deus enviou-te para seres o nosso bispo” – informaram o surpreendido Nicolau. E logo ali lhe colocaram o robe vermelho de bispo. Ora, Nicolau era diferente dos outros bispos da sua altura. A sua família era riquíssima e ele pensava que a fortuna que possuía vinha de Deus e pertencia a Deus. Por isso ele dedicava-se a servir a Deus. O serviço de Deus era o seu respirar de vida. Uma das suas preocupações crescentes era um costume que havia na Turquia de que as meninas que não tivessem dote para casar, seriam vendidas como escravas (que geralmente incluía maus-tratos). Isto incomodava o gentil coração de Nicolau. Assim, na noite de 6 de Dezembro, coberto pela escuridão, Nicolau visitava a casa das meninas casadoiras. Sorrateiramente ele largava um saco de ouro pela janela de cada casa que aterrava nas meias estendidas para secar. Pela manhã a alegria era imensa. As meninas estavam salvas da escravidão. O exemplo de Nicolau atravessou o tempo e contagiou algumas freiras francesas do século XII. Todos os anos, elas faziam visitas nocturnas a famílias carenciadas, levando cestos cheios de frutas, nozes e verduras. Coisas que estas famílias não poderiam adquirir. Assim nasceu a tradição do Cabaz de Natal. A ideia de Nicolau inspirou muitas tradições natalícias ao longo do tempo, mas foi já no século XX que Haddon Sundblom desenhou o Pai Natal, tal qual o conhecemos hoje, para o anúncio da Coca-Cola. E, o facto é que se a ideia de Pai Natal é puro marketing, a figura de Nicolau é histórica e real. Infelizmente, prevaleceu o marketing.
Azia ou simpatia
E é daqui que nasce o repúdio que muita gente tem em relação ao Natal. Argumenta-se que as suas origens não são cristãs e que há todo um passado de mitologia misturada com lendas, ligado ao acontecimento. Algumas pessoas, só de dizermos a palavra “Natal” ficam com azia – e não é das nozes nem do bolo-rei. Outras, por causa da oportunidade de reunir a família e de comer petiscos muito apreciados, ficam radiantes e têm uma simpatia especial pelo Natal (eu confesso que gosto muito do bacalhau, das couves e da roupa velha!). Então, azia ou simpatia? Em que é que ficamos? Qual deve ser a atitude do Cristão?
Um princípio e um exemplo
Antes de desmontarmos algumas tradições desta quadra, vejamos duas ideias chave.
Primeiro, há um princípio que é claro: A Bíblia dá-nos muita latitude quanto à liberdade para observar ou não certos dias especiais. Paulo diz em Romanos 14:5-6: “Um faz diferença entre dia e dia. Outro julga iguais todos os dias. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz”. E em Colossenses 2:16, ele diz: “Ninguém vos julgue por causa de comida ou bebida ou dia de festa”. Para Paulo, a liberdade cristã nestas questões era essencial e inequívoca. Depois, há um exemplo dado por Cristo que me parece luminoso. Em João 10 vemos Cristo a participar da Festa da Dedicação – conhecida como festa das luzes (Hanukah). Sabe-se que esta festa era celebrada desde o ano 164 a.C. e que não era autorizada pelas escrituras judaicas. Todavia, Cristo está lá, participa e até faz afirmações categóricas da Sua divindade: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30).
Porquê 25 de Dezembro?
Muito bem! Mas, devemos festejar o Natal? E deveríamos fazê-lo a 25? A escolha de 25 de Dezembro, observada desde 273 d.C., reflecte uma convergência da Igreja, preocupada com a adoração a deuses pagãos e a identificação cristã com Cristo como o Sol de Deus. O dia 25 de Dezembro já era anfitrião de dois festivais: natalis solis invicti (o festival Romano do “Nascimento do Sol Invencível”); e o nascimento do deus indo-iraninao, Mitra, que era considerado o “Sol da Justiça” e que tinha uma grande adesão entre os soldados romanos. No ano 336 d.C., Constantino, entretanto convertido ao cristianismo estabelece de vez a celebração do Natal a 25 de Dezembro. O seu objectivo era afirmar a excelência de Cristo sobre as divindades pagãs. Como a data coincide com o solstício de Inverno, altura em que o Sol começa a ganhar ascendência sobre a noite, a imagem era perfeita para apresentar Cristo como Aquele que dissipa as trevas. E o povo apanhou bem a ideia no ditado: “Natal, salto de pardal!”. Não me parece que há aqui nada de suspeito. Apenas praticidade imperial. Entretanto, algumas recentes teológicas parecem-me determinantes em fixar a data de 25 de Dezembro. Vejamos: relacionar a morte de Cristo com o seu nascimento é um conceito antigo. Já no ano 200 a.C., Tertuliano dá conta de que Cristo foi crucificado no dia 25 de Março (calendário Romano), exactamente nove meses antes de 25 de Dezembro. E 25 de Março é reconhecidamente aceite como a data da concepção de Cristo (Anunciação). Então, Cristo teria sido concebido e morto exactamente no mesmo dia. Esta ideia era comum por volta do século IV da era cristã. Muitas pinturas retratam Cristo a descer dos céus no dia da sua Anunciação carregando uma cruz, simbolizando esta estreita ligação entre concepção e morte. O único bebé que nasceu para morrer. Agostinho fala dessa associação de acontecimentos num sermão: “Acredita-se que Cristo terá sido concebido no dia 25 de Março, que foi o dia em que morreu. Assim o ventre da Virgem, onde nenhum mortal tinha sido concebido, corresponde ao túmulo onde foi sepultado, e que nunca tinha sido usado. Mas Ele nasceu segundo a tradição no dia 25 de Dezembro” (Agostinho, Sermão 202). Nas Igrejas Cristãs do Leste e no Norte de África, a associação também era conhecida, mas com datas que deram o resultado de 6 de Janeiro. A noção de que criação e redenção teriam de acontecer no mesmo dia do ano era uma tradição judaica, registada nos Talmudes. Assim, as datas do Natal poderão ter resultado de uma cuidado reflexão teológica das cronologias: Cristo foi concebido e morto no mesmo dia e nasceu 9 meses depois.
Resgatar o Natal
Por isso se tivesse de votar, eu optava pela simpatia. A minha expectativa do Natal tem tudo a ver com uma atitude de vida. Pesando todas as provas, chegamos à conclusão que o Natal não tem nada a ver com o Pai Natal e com prendas, que a comida é apenas uma razão para vermos a família e então teremos o nosso coração no lugar certo. Por outro lado, o Natal também não tem nada a ver com pastores, magos, anjos e estrelas – embora todos sejam mencionados na Bíblia. É significativo que as seitas religiosoas que negam a divindade de Cristo, dizendo que Ele não é Deus, são precisamente aquelas que mais se opõem ao Natal. Por tudo isso é urgente resgatar o sentido bíblico do Natal. O facto incontornável é que Deus invadiu a história para se empequenar em forma humana a fim de nos salvar. Natal é o milagre da Encarnação. Natal é Deus connosco, entre nós, como nós. O que era Glorioso se fez humano; o Eterno entrou na dinâmica espaço/tempo; o Invisível se apresentou aos nossos olhos; o Potente Intocável inacessível se fragilizou. Assim, é urgente desnudarmos o Natal das suas roupagens comerciais, proclamando que “Cristo veio ao mundo para salvar pecadores” (1 Timóteo 1:15).