O dia está particularmente quente em Abadiânia, Goiás – a cidade mais famosa do Brasil na semana passada. Hordas de transeuntes vestidos de branco, caminham pela terra batida na direcção da Casa de Santo Inácio de Loyola, conhecida internacionalmente como um hospital de curas espirituais. Alguém desprevenido poderia pensar que um director de Hollywood tinha desembarcado na região para filmar um daqueles filmes futuristas em que a população caminha na mesma direção, usa a mesma roupa e obedece a um grande mestre carismático. Hipnotizados. Obcecados. Em transe. O personagem principal seria o médium João de Deus, 76 anos, receptor de entidades que passam luz e energia.

Ora, o enredo é bem real. O choque das revelações horrendas dos últimos dias deixou o Brasil boquiaberto. Até ao momento em que escrevo João de Deus está foragido da justiça que decretou a prisão preventiva do médium na sexta-feira dia 14 de Dezembro. A polícia tem feito buscas em mais de 20 locais possíveis (ele acumulou riqueza e várias propriedades aos longo dos anos) de encontrar o médium, mas sem sucesso. O pedido de prisão preventiva foi apresentado pelo Ministério Público no Estado de Goiás, com a justificação de que solto o médium poderia ameaçar mulheres que dizem terem sido abusadas sexualmente por ele. As investigações tiveram início na Segunda-feira, dia 10 de Dezembro depois da TV Globo apresentar depoimentos de mulheres relatando abusos sexuais. Em 4 dias o Ministério Público reuniu 335 denúncias vindas de 14 Estados do Brasil, e 6 países diferentes. Pelas contas do Ministério Público, se comprovadas as denúncias, o médium pode estar sujeito a uma sentença superior a 150 anos de prisão. A força tarefa criada para apurar os crimes é imensa e inclui pesquisadores, psicólogos, assistentes sociais, etc. Uma possível vítima cometeu suicídio no dia 12. A família, por ser seguidora de João de Deus, nunca acreditou na versão da jovem.

Os relatos são hediondos. Priscila Marques, 34, afirma ter sido abusada três dias seguidos por João de Deus, em 2007. Ela foi à Abadiânia para tentar se curar de uma depressão crónica. “Ele puxou minha mão para trás e vi que estava com as calças abaixadas e o pênis para fora… ele disse que eu tinha que acariciar o pênis dele pra ser curada. Fiz o que ele mandou. Gozou, pegou uma toalha branca que usava no ombro e se limpou… Quis tirar minha roupa e nessa hora eu falei que não, pedi por favor. Ele ficou bravo: ‘Você não quer ser curada? Você não vai ser nada na vida se não for curada’. Me neguei de novo. Ele deitou em cima de mim, colocou o pênis pra fora e ficou um tempo se esfregando em mim.” Relato completo aqui.

Importa aqui tentar fazer sentido deste drama. Como é possível que um homem tenha sistematicamente abusado de tantas mulheres sem ser apanhado? E, como é possível que um homem que se diz santo, abusar desta maneira de pessoas vulneráveis? O que leva alguém a passar de curandeiro a embusteiro? Algumas ideias poderão ajudar.

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Incorporar vs Encarnar – De acordo com a anedota Deus chegou-se a Adão e disse-lhe: “Tenho boas e más notícias. O que queres ouvir primeiro?” Adão escolheu a boa. “Vais ter um cérebro e um pénis”. E agora a má notícia: “Os dois não funcionam ao mesmo tempo. Só haverá sangue suficiente para um deles funcionar de cada vez”. Drama de macho desabrido poderão alguns comentar. No entanto, de acordo com o Livro do Médiums, de Alan Kardec, lê-se o seguinte: “O desenvolvimento de mediunidade é em razão do desenvolvimento moral do médium? Não. A faculdade propriamente dita tem relação com o organismo; é independente da moral. O mesmo não acontece com o uso que pode ser mais ou menos bom, segundo as qualidades do médium.” Ou seja a espiritualidade do médium nada tem a ver com a sua conducta. Esta afirmação é totalmente diferente dos conceitos Bíblicos de que “Deus é Luz, e n’Ele não habitam trevas nenhumas” (1 João 1:5). Por isso devemos “testar os espíritos para ver se são de Deus” (1 João 4:1). O Apóstolo João continua a admoestar-nos neste assunto: “todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus. O que não confessa que Cristo veio em carne não é de Deus” (1 João 4:2-3). Este aspecto é essencial. O Apóstolo João declarava que ele mesmo tinha visto e ouvido, e as suas mãos tinham tocado a realidade do Deus vivo encarnado em Jesus Cristo. A fórmula “ver, ouvir e tocar” era o juramento usado para quem comparecia em tribunal como testemunha ocular dum acontecimento. João, o Apóstolo, afirmava sob juramento que Jesus Cristo “se fez carne a habitou entre nós” (João 1:14). A historicidade de Cristo é essencial para a sua autoridade. Ele tinha um certo timbre de voz, um certo jeito de sorrir, de olhar e de se movimentar. O tom de pele, cor do cabelo e olhos, atestavam que Ele era uma figura real na História. Cristo nunca incorporou, Ele encarnou. O desejo de incorporar e violentar o corpo humano procede de espíritos que não são de Deus. A factualidade histórica dá autoridade à presença de Cristo. E a Sua presença é cheia de “graça e verdade”. N’Ele existe harmonia entre a essência e o comportamento. Tudo o mais é pura imitação. Uma farsa. Enquanto o Apóstolo João testemunha da encarnação de Cristo, o João de Deus prima pela incorporação. E, nesta questão da incorporação só mais uma ideia. Os espíritos têm necessidade de incorporar para se manifestarem nas nossas dimensões de espaço e tempo. Por isso quando Cristo expulsa demónios dum homem, estes rogam-Lhe: “permite-nos que entremos naquela manada de porcos” (Mateus 8:31). Cristo permite, e a manada precipita-se para o abismo. A necessidade corpórea para a existência significante é notória.

Endeusar vs Respeitar – Uma outra ideia que poderá explicar este descalabro moral de João de Deus prende-se com o narcisismo inerente a todos os médiuns, padres, pastores, curandeiros, ect., que focam os holofotes sobre si mesmos. Quando isso acontece a concentração do culto das pessoas está centrada no suposto instrumento usado por Deus. O ego exacerbado incha e inevitavelmente rebenta. É a ressaca do Pecado Original. É a incapacidade de viver nos píncaros do sublime. Quanto mais o ser humano é exaltado como luz, mais ele sucumbe às suas trevas interiores. A santidade narcíssica desvenda a volúpia fantasmagórica que habita no mais fundo de todos nós. E o potencial em todos nós para isso!? E nesse calabouço da alma a “consciência é cauterizada” porque “deu ouvidos a espíritos enganadores” e “hipocritamente falou mentiras” (1 Timóteo 4:1-2).

Esvaziar vs Ocupar – Tudo isto nos deixa uma sóbria pergunta: Que fazer? Cristo disse que “quem não é comigo é contra mim” (Lucas 11:23). Ele mesmo explica que quando um espírito imundo é expulso dum homem esse mesmo espírito anda por lugares áridos e não achando repouso volta para “casa” o corpo humano donde foi expulso. Vendo a sua “casa” vazia e arrumada (sem Cristo, e sem o comportmento adequado a um seguidor de Cristo – Lucas 11:28), vai e junta-se a  sete espíritos mais fortes do que ele, e juntos habitam no corpo daquele homem. Cristo conclui “o último estado deste homem é pior do que o primeiro” (Lucas 11:26). O médium João de Deus, sempre em contacto com supostos “espíritos de luz” seria mais “evoluído” do que a maior parte dos homens. Mas é um equívoco comum achar que o contacto com o Além é garantia de bondade. Lúcifer também é puro espírito, espírito de luz (daí o seu nome, aliás), e era o mais belo, o mais “evoluído” de todos, quando caiu. Ele não estava imune. Ninguém está. Só tendo Jesus Cristo como Senhor (Kurios, é a palavra no Grego que carrega a ideia de soberania) da vida é possível enfrentar as pulsões pecaminosas do quotidiano. Uma tábula rasa mental, emocional e volitiva não ajuda, boas intenções também não ajudam. Vestir de branco também não. O corpo vestido de branco é apenas a “casa limpa e arrumada” pronta para ser habitada por qualquer espírito ou entidade não corpórea. É primordial, no mundo espiritual, ocupar a “casa” com Cristo. Orar e vigiar, é desejável. Manter distância de “encantadores, médiuns e de quem consulta os mortos”, é aconselhável. “E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as. Porque o que eles fazem em oculto até dizê-lo é torpe. Mas todas estas coisas se manifestam, sendo condenadas pela luz, porque a luz tudo manifesta. … Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como sábios, remindo o tempo; porquanto os dias são maus. Por isso não sejais insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor” (Efésios 5:11-17).

Teólogo