1. Anda por aí muita gente boa e séria, exibindo alta preocupação e atirando para o ar vaticínios negros. Uns afligem-se com o desconcerto e o desnorteio do caminho, outros, com contas que de antemão se sabem estar erradas, outros ainda com o tamanho da irresponsabilidade que significa contas erradas, após quatro anos, quatro, de martírio para as acertar.

Não percebem como é possível não “ver” como à vista desarmada se vê, a nefasta claridade do erro. Uma enfiada de erros, como roupa pendurada num arame. Têm razão. Mas a minha dúvida é outra: que haverá de “diferente” dentro da cabeça de quem nos governa para considerar que pode – desta forma quase demencial – fazer assim de nós parvos? Nós, isto é, os que estranham esta, como dizer?, forma de vida. Não se apercebendo de todo dessa estranheza, o poder socialista fala – santo Deus – em lutos, acantonamentos e casulos. Sim, facilitar-lhes-ia a vida remeter para isso, era um poderoso álibi (mas quem ao mesmo tempo não sorri com o procurar-se uma boia de salvação, como fez António Costa, num casulo ou pedi-la um enlutado? )

Infelizmente – antes fosse – não é isso. Tem a ver com esta coisa mais prosaica de dois e dois nunca poderem ser cinco. Nem jamais o terem sido, na história do mundo e da humanidade. Mas os ministros e o seu chefe não acreditam – são coisas de “ressentidos” – e custe o que custar, irão a mostrar ao país e à “Europa”, com igual ufanismo, que com eles, sim, é verdade, dois e dois são cinco.

O falso “cinco” vai custar aos nossos filhos e netos uma nota incomportável que eles, como já é da tradição da casa, não poderão pagar, enquanto de caminho a nota dará cabo do resto das nossas poupanças, contas e projectos. Se não for das próprias vidas e do modo como tínhamos pensado contar com elas. (É também tão simplesmente injusto quanto isto.)

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Devo porém dizer que por muito que o actual Executivo espante gregos e troianos e indigne os restantes, a memória ampara-me neste lance, reduzindo-me substancialmente o espanto. (Excepção feita, claro, ao acharem-me tão desprovida de cabeça que posso incessantemente comprar o gato por lebre que, também incessantemente, o actual PS me vende.)

Sim, a memória do ontem aclara-me o hoje e lembro-me, por exemplo, do desinteresse condescendente de António Costa quando, nos idos de 2012/13/14, por vezes lhe falava de Vítor Gaspar. Para lhe dizer não ter eu outro remédio senão perceber o que o então ministro das Finanças estava a tentar fazer, visto pelo prisma da (irremediável) indispensabilidade do que havia que fazer. Inteligente e rápido, António Costa sabia quem tinha diante de si quando se evocava Gaspar, não ignorando as suas qualidades intelectuais, nem aquela espécie de “singularidade” que não podíamos comparar com nenhuma outra, na cena política portuguesa.

Mas isso agora importa pouco. O que me traz é que Costa achava “tudo aquilo totalmente errado, de uma ponta à outra”. Não havia nem motivo, nem necessidade, nem justificação para aquela política. Como muitos outros, quase todos (ou todos?) os socialistas, ele genuinamente não percebia que dadas as concretíssimas circunstâncias das nossas finanças – da falta de tesouraria, ao resto – o que era preciso fazer era aquilo, ou muito parecido. Sucede que na família socialista havia uma lente misteriosamente embaciada sobre o curso destas coisas, distorcendo inteiramente a feia realidade do país. E como tal dissolvendo as culpas, os erros e os abusos da mesma família, por esse país fora. Ainda não acreditam em nada, de resto (“invenções da direita”), a negação dura até hoje. Expiar o que quê, nesse caso? Retirar qual lição de um passado que nunca existiu? Eis o que explica um bom par de coisas.

No Largo do Rato nunca se tratou sequer de uma questão de grau ou de tom na aplicação do “programa de ajustamento” – e aí sim, admito, haveria farto campo para discussões e trocas de pontos de vista. Tratou-se sim de virar costas, negando tudo.

Não é verdade que qualquer PEC teria remediado aquela maçada das contas, melhor, mais depressa e sem dor? (Mesmo, se após o fracasso do célebre número 4, a corrida prosseguisse até ao infinito dos PECs?)

Ou seja, para o PS a coligação entreteve-se com uma deliberada opção “política” que cuidava até de ir “além da troika” (infelizmente para o país e para os portugueses, ficou a meio), motivada exclusivamente por questões do foro “ideológico”, às quais eles chamavam “liberalismo”. Sobretudo, nunca originada pelo desastre financeiro herdado ou uma bancarrota iminente. Ouvi isto várias vezes e percebi que era a sério: os socialistas era exactamente isto que pensavam.

O equívoco dura até hoje, tão bem enraizado que está. A raiz, forte, dura, persistente, tem feito crescer esta árvore ruim no jardim socialista. Os frutos, amargos, já estão na dieta nacional. Iremos engoli-los, como óleo de fígado de bacalhau, até alguém dar por isso que, afinal, dois e dois nunca foram cinco.

2. Esta vida, valha a verdade, é aliás recorrente. Não é de hoje. Portugal tem vivido aos tombos, entre altos e baixos, ouro e miséria, oceanos e dívidas, fausto e contas por saldar. Dívidas astronómicas e algumas pagas ao “estrangeiro” oitenta ou cem anos depois. Não é sistema? Não. Mas tem sido assim, uma confrangedora incapacidade: nas elites sobretudo, nas débeis instituições, num Estado perene, omnipresente e sôfrego, mas nem por isso forte onde poderia sê-lo, e instruído onde tinha obrigação de o ser.

E, no entanto, parece que nos pesa pouco, tantos são os “culpados” para a esta congénita deficiência, que só variam com as crises e as épocas. O mais recente chama-se “Europa”, face à qual o primeiro-ministro nos avisara de resto – tal como o desaparecido Tsipras – que iria levantar a voz, deixando de ser um miserável lacaio às ordens de Merkl.

Com os resultados que se conhecem: a manutenção (agravada) da austeridade na Grécia e as mil emendas no esgarçado e irreconhecível amontoado de palavras que dá pelo nome de Orçamento do Estado, em Portugal. Mesmo que a Europa agonize e os seus maestros estejam exaustos, faz impressão o modo como os socialistas não desistem de nos convencer que os porão na “ordem” (em qual?).

3. Torno enfim mais claro o que penso, socorrendo-me de dois incisivos parágrafos do texto que aqui escreveu há dias Paulo Ferreira, partindo do tema da aplicação do programa de resgate na Grécia, Irlanda e Portugal.

Diz ele: “As intervenções da troika tiveram os seus erros, que não foram poucos, mas a cartilha aplicada nos três países foi semelhante: cortes na despesa pública, aumentos de impostos, maior abertura à concorrência de alguns sectores. Foi a cartilha que muitos consideram “neoliberal” e de empobrecimento. Os opostos resultados a que chegaram os três países intervencionados permitem-nos pensar que a base de competitividade, a estrutura das economias e a qualidade das instituições dos países são muito mais determinantes para a pobreza ou prosperidade futuras do que os programas de emergência aplicados, os seus erros e as suas virtudes. Os resgates não mudam a essência dos países e das economias. Os que não são competitivos, estão minados por corporações, rejeitam a abertura de mercados, preferem o proteccionismo e Estados anafados que não conseguem pagar, não mudam em três ou quatro anos de tratamento de choque com medidas pontuais e de emergência. É isso que está a acontecer na Grécia e, em menor escala, em Portugal.

Mais claro, mais lúcido (e mais triste) é impossível.

4. Falei de Vitor Gaspar. É impopular eu sei. Não faz mal, alguma coisa lhe devo.

Com um temporal desfeito saí de casa há dias com o exclusivo propósito de poder felicitá-lo, a ele e a Paulo Macedo, pela distinção recebida de Cavaco Silva. Para mim foi muito simples ter lá ido, não houve sombra de estados de alma. É que das duas, uma: ou mudam as regras da dita “Europa” para os pobres como nós e substituem este “modelo” e o seu caderno de encargo por outro; ou enquanto os actuais fizerem lei, há quem os aplique bem e com isso sirva a sua pátria, ou quem os aplique mal e prejudique irremediavelmente os seus países. Vítor Gaspar e Paulo Macedo (e evidentemente Passos Coelho e se não fosse ele) ilustram bem a hipótese A.

Sim, mais impopular que Vítor Gaspar é impossível. Paciência. Daqui a uns anos, quando de novo cumprirmos a tradição e entrarmos em estado de necessidade, falamos (já que nunca tivemos outra vida).

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