Quando morreu sem herdeiro, o rei da Frígia deixou o trono vazio. O Oráculo anunciava, então, que o sucessor acabaria por chegar à cidade num carro de bois, o que aconteceria com Górdio, um camponês que seria assim coroado rei. De forma a não esquecer as suas origens, Górdio levou o seu carro de bois ao templo de Zeus e amarrou-o a uma coluna com um nó impossível de desatar. A Górdio sucederia o seu filho Midas, que não deixa herdeiros. E o Oráculo anunciou a quem o consultou que quem desatasse o nó feito por Górdio reinaria todo o mundo. A primeira página do Expresso da passada sexta-feira trazia consigo o nó de Górdio do nosso tempo, anunciando o resultado de uma sondagem: «os portugueses mais atingidos pela crise já querem cedências à Rússia».
Comecemos pelo início. A Covid-19 chegou, dominou a totalidade da agenda mediática (lembram-se que nessa altura foi assassinado um cidadão ucraniano no aeroporto e que isso só foi notícia meses depois?), foi comunicada como o fim dos tempos (lembram-se dos inexplicáveis e descontextualizados camiões com mortos em Itália? Das aparentes mortes súbitas na China associadas mediaticamente ao vírus?), a doença que não poupava ninguém (lembram-se de como diariamente se anunciava que as celebridades x e y estavam infectadas, sem que depois se desse notícia da sua recuperação?) e que, por isso mesmo, o planeta inteiro tinha de ser encarcerado durante duas semanas para que os sistemas de saúde não falissem, com base em projecções matemáticas que anunciavam escaladas de infectados e mortos até ao infinito. Não havia outra forma de parar um coronavírus que não fosse fechar o mundo durante duas semanas. Sucede que aquela tese das duas semanas era absurda desde logo: como é que alguém pensava, se é que pensava, tirar as pessoas de casa com um vírus respiratório a correr naturalmente na comunidade? Enfim, a história é conhecida: não fizemos rigorosamente nada para proteger as pessoas que realmente estavam em risco (lembram-se de deixarem morrer velhos à sede em Reguengos?), anunciámos a salvação da humanidade porque se protegeram aqueles que, regra geral, não seriam especialmente afectados pelo vírus (com a vacinação semi-chantageada de crianças e encarceramento de adultos saudáveis), e cometemos uma espécie de suicídio colectivo económico, social, político, democrático e até moral.
Não foram, na verdade, os governos que avançaram com a reacção pandémica. Foram milhões de cidadãos anónimos, amedrontados, com pouco apreço pela liberdade, que ainda assim dão por garantida, e com menos hábito de assumir a responsabilidade dela decorrente, impulsionados por uma comunicação social viciada em espectáculo, sofrimento e horror. Governos maioritariamente fracos como os dos países aparentemente democráticos e livres acabaram por fazer o que lhes pediam: caso não o fizessem, corriam o risco de ser derrubados pelos sentimentos apocalípticos das massas. Para fazer face a tudo isto, os governos aproveitaram para ir implementando um rol extensíssimo de medidas totalitárias e segregacionistas com base em critérios sanitários, praticamente todos tolerados pelas populações, quando não mesmo exigidos por estas, despejaram dinheiro na economia, com as cadeias de produção interrompidas. Parecia evidente que a crise chegaria, que os produtos faltariam e que os preços iam escalar; e que assim viria também a fome, a pobreza, a miséria e, claro, mortes. Mas nós vivemos um período em que toda a morte era tolerável conquanto não houvesse um teste PCR positivo pelo meio. «Primeiro a saúde, depois logo se pensa na economia», dizia-se. Pois aí têm, senhoras e senhores, a economia a bater-vos à porta. E democracias altamente corroídas depois de dois anos de avanço consentido ou solicitado de medidas de controlo totalitário.
Sucede que fazer uma análise retrospectiva sobre os dois anos pandémicos não é do interesse de nenhuma das partes envolvidas: a comunicação social recusará o seu papel na manipulação das massas através da insistência num monotema elevado em tom de seita religiosa; os governos rejeitarão responsabilidades quanto às escolhas políticas que fizeram; as populações não reconhecerão que a crise de hoje foi, em boa medida, provocada pelo seu próprio comportamento. A invasão da Ucrânia pela Rússia surgiu, por isso, como um escape ideal, no momento mais oportuno. É daí que nasce a nova narrativa: a crise é incontrolável porque ela nasce da guerra, e contra a guerra não podemos, naturalmente, fazer nada. Só que tudo isto é anterior à guerra.
Já aqui escrevi anteriormente que estamos perante aquilo que me parece um facto inegável: a Rússia invadiu ilegitimamente a Ucrânia, aquela é agressora, esta é agredida, e era necessário apoiar de alguma forma a parte frágil do conflito e isso implica sacrifícios no Ocidente. Mas confesso-vos o desconforto que tive quando assisti pela televisão àquelas manifestações súbitas de solidariedade, à mobilização de sociedades inteiras a caminho da Ucrânia, as mãos no peito, tudo naturalmente mediatizado e colocado nas redes sociais. Haverá quem me acuse de cinismo. Prefiro realismo de quem olha para a sua comunidade e tenta perceber o que ela é em vez de analisar os factos em função do que gostaria que ela fosse: o que aquilo sempre me pareceu, e escrevi-o também, foi fogo fátuo, uma nova necessidade de demonstração pública de bondades, mais um momento de sentimentalismo colectivo, que terminaria com o desaparecimento do mediatismo em torno da guerra ou, mais provável, quando a crise começasse a chegar à carteira das famílias europeias, precisamente porque a origem da crise estava totalmente associada à guerra em termos de narrativa política.
Julgo que não estava errado. A sondagem publicada pelo Expresso di-lo claramente: é pelos mais pobres que começa a saturação e nasce a ideia de que se pode ceder à Rússia. E isso acontece porque nos disseram, e continuam a dizer, que a falta de dinheiro que se sente, para já de forma mais grave precisamente nos mais pobres, foi exclusivamente provocada por Putin. A guerra foi um factor importante de aceleração da crise, mas não é ela quem a espoleta. E é aqui que reside o nó de Górdio: como é que se pretende garantir o apoio popular ao suporte europeu à Ucrânia sem fazer uma análise fria dos dois anos pandémicos, e sem tirar quaisquer responsabilidades, por exemplo, das decisões políticas que deixaram boa parte dos europeus na dependência energética da Rússia, e ao mesmo tempo se consegue evitar uma escalada de contestação generalizada na Europa?
Depois da morte de Midas, passaram quinhentos anos sem que ninguém conseguisse desatar o nó feito pelo seu pai. Conta-se que um dia, ao passar na cidade, Alexandre, o Grande, ouviu falar da história e resolveu ir ao templo de Zeus. Analisado o nó, cortou-o com a espada, resolvendo de forma simples um problema complexo. A resposta fácil à questão que nos prende está à vista, os europeus começam a preferir soluções fáceis. O leitor chamar-me-á pessimista: explicai-me, então, como desatar o nó sem recorrer à solução fácil.
P.S.: O embaixador Luís de Almeida Sampaio fez publicar o livro Diplomacia em Tempos de Troika (D. Quixote), um relato essencial dos seus tempos enquanto chefe da representação portuguesa em Berlim. O livro traz um prefácio de Passos Coelho, que tem também interesse próprio, mas vale sobretudo pela forma objectiva e transparente como matérias normalmente tão sensíveis são tratadas e abordadas. Num país onde o apreço pela memória não é grande, e onde não existe um especial hábito de partilhar memórias, este trabalho é muito importante para começarmos a fazer a história clara e despolitizada da última bancarrota.