Cerca das 11 da noite do dia 5 de Janeiro, hora local, Novak Djokovic aterrou em Melbourne para defender o título de vencedor do Open da Austrália. À chegada foi retido sob o pretexto de não poder apresentar evidência de cumprir com os requisitos de entrada no país, apesar de possuir um visto emitido pelo governo australiano e uma isenção de vacinação com revisão médica com dupla ocultação (isto é, onde os examinadores em teoria não conheciam o nome do examinado) do departamento de saúde do Governo do Estado de Vitória. O assalto ao carácter do tenista, perpetrado pelos media nos dias posteriores, não revelou quaisquer irregularidades. Nos excertos das cerca de oito horas de interrogatórios, perdão, “entrevistas intermitentes” publicadas nos tabloides, não é dada nenhuma explicação ao sérvio sobre que evidência faltava. Provavelmente nenhuma. O tribunal deu-lhe a razão: a detenção do tenista foi irregular e os seus direitos foram descaradamente violados. Foi essa a conclusão do juiz Kelly, que perguntou em jeito de conclusão aos representantes do governo australiano “que mais poderia este homem ter feito?”
O único, verdadeiro e relevante motivo pelo qual Novak Djokovic foi deportado da Austrália foi porque, em ano de eleições, o governo acreditou que a opinião pública o ia castigar se deixasse o sérvio jogar. Todas as outras explicações sobram. Face à renúncia do tenista em participar no torneio, a organização do mesmo, com a colaboração do governo do Estado de Vitória e de acordo com as leis em vigor no país, julgou encontrar uma solução que permitia ao jogador entrar (como entraram outros, alguns depois expulsos à pressa) sem ter que mostrar um certificado de vacina que sabemos, agora com certeza, não possuir.
Se alguém acredita que o Nº 1 do ranking mundial e nove vezes vencedor do torneio, que coloca a cidade de Melbourne à altura de Londres, Paris e Nova Iorque no panorama do ténis mundial, vai ser parado numa alfândega por um funcionário local, extravasando as suas competências como ficou demonstrado em tribunal, sem que existam ordens claras de cima para o fazer, só se engana a si próprio. As leis são iguais para todos, mas nem todos são tratados da mesma forma pelos agentes que aplicam essas leis. Novak Djokovic não é o infeliz Ihor Homeluk. Do funcionário de imigração de serviço, não se esperaria outra coisa que não fosse amabilidade, cortesia e deferência. De onde vem então um interrogatório, perdão, uma entrevista de oito horas? As ordens para o deportar, interrogar e deter foram dadas aos funcionários da alfândega por uma autoridade próxima ao primeiro-ministro australiano, Scott Morrison. O que se seguiu foi apenas um epílogo em que o diktat governamental de impedir a sua entrada sob qualquer pretexto pareceu poder ser posto em causa nos tribunais.
A surpreendente decisão governamental é uma demonstração de como, ao contrário do que foi dito até à exaustão, não está a acabar tudo bem. Dias antes, o jogador tinha anunciado nas redes sociais que ia estar presente no Open da Austrália, para júbilo dos amantes da modalidade e indignação de uma grande maioria de australianos, que se submeteram a um dos regimes mais restritivos do planeta para combater (sem qualquer êxito, diga-se de passagem) a propagação da última variante da Covid-19. Depois de praticamente barricar o país durante dois anos, à chegada de Djokovic a Austrália liderava o diagnóstico diário de contagiados a nível mundial (apenas atrás de Israel, o país da quarta dose). Incitada pela imprensa sensacionalista (que hoje em dia é quase toda), a populaça não tomou a bem que um milionário estrangeiro pudesse passear livremente no seu país sem tomar a vacina experimental que muitos ali aceitaram injectar simplesmente para poder entrar num restaurante. Num ápice juntaram-se a natural propensão ao histerismo das pessoas que estão empenhadas em cumprir todas as regras, tanto as razoáveis como as completamente ridículas (e perigosas para a vida em sociedade), com a inveja e ressentimento de quem se vê espezinhado no quotidiano pela tirania absurda, comparável apenas à chinesa, dessas mesmas regras. E o governo australiano fez o que fazem todos os governos que se preocupam com a próxima eleição: cedeu ao clamor daqueles desgraçados que, instigados pelos fariseus, pediam a libertação de Barrabás. Neste caso, a condenação de Novak Djokovic.
Para se ter uma ideia, a cidade de Melbourne esteve em lockdown durante 262 dias no último ano e a polícia utilizou métodos como o reconhecimento facial e a geo-localização para monitorizar o cumprimento das regras de isolamento. Em Setembro, essa mesma polícia disparou balas de borracha e granadas de gás lacrimogénio contra quem decidiu manifestar-se contra. O governo australiano enviou pessoas infectadas, ou suspeitas de o estar, para campos de concentração e impediu a entrada no país a familiares estrangeiros de australianos, em particular durante a época festiva, separando famílias que prefeririam estar juntas mesmo com o risco de infecção, a estar separadas (e infectar-se à mesma, como acabou por acontecer). Quando o primeiro-ministro justificou a deportação de Djokovic com os enormes sacrifícios feitos pelos australianos, omitiu que estes foram essencialmente impostos pelo seu próprio governo sem qualquer êxito na prevenção dos contágios, e não pelo tenista que até tinha um teste negativo.
O grande erro de Djokovic foi acreditar que os políticos em geral e os do governo australiano em particular são pessoas de bem. Acreditou sinceramente que uma solução tinha sido encontrada para que ele pudesse jogar num torneio que, já tinha deixado claro, não pretendia disputar se fosse obrigado a mostrar um certificado de vacinação. É que mesmo quando todos o pudéssemos adivinhar, Djokovic nunca disse se estava ou não vacinado, apenas que a sua saúde era uma questão privada que não pretendia tornar pública. Algo que até 2019 era não só razoável como até legítimo e legal, como provavelmente ainda é se alguém levar a queixa a tribunal. Foi o governo australiano quem divulgou que o tenista não estava vacinado, transpirando aos jornais a informação recolhida durante o interrogatório, perdão, entrevista. Quando a Justiça se opôs ao evidente atropelo do procedimento legal, o ministro de imigração australiano deixou cair a máscara e utilizou uma ordem directa de deportação, prevista na lei do país, para conseguir aquilo que não tinha conseguido através da intimidação ao tenista. Sob a justificação de que a presença do atleta no país poderia incitar desacatos entre os agrupamentos anti-vacina (ou anti-certificado, ou anti-confinamento, ou anti-governo, vá-se lá saber) o ministro Alan Hawke invocou um poder discricionário que está contemplado na lei australiana – a Secção 133C do Migration Act – quando foi o seu próprio governo quem fez tudo para promover Novak (ou No-Vax) a símbolo dessa luta.
Com o benefício da retrospectiva e o atrevimento de quem não tem a carreira do tenista nas mãos, o erro da defesa de Djokovic foi não ter tentado fazer ver aos juízes que a lei estava a ser utilizada muito para além daquilo para que foi criada. Estava a ser utilizada para refrear as críticas à política de saúde do governo australiano. O tribunal apenas ratificou que ao ministro lhe competia o poder de deportar o indivíduo, não que este último tivesse cometido alguma ilegalidade. Não será coincidência que, depois de afastado o incómodo que a presença de Djokovic representava para o fracasso das medidas draconianas, apareçam finalmente artigos, como este do The Guardian, ou este do The Economist, que afirmam claramente que o caso expôs a disfuncionalidade e o perigo das leis de vistos australianas, e colocou um precedente, ao permitir a deportação de indivíduos estrangeiros que, no uso da liberdade de opinião, tenham expressado opiniões políticas contrárias ao governo em funções.
A questão, no entanto, tem raízes e consequências ainda mais profundas porque Djokovic nem sequer expressou opiniões políticas contrárias ao governo. A acusação foi que a sua mera presença, mesmo calado, poderia incitar manifestações contra a política de vacinação do governo. O ministro não precisou de explicar ao tribunal como é que essa lei se aplica a um indivíduo cujo único acto relevante que pretende realizar na Australia é jogar ténis. Era possível que a sua presença no país provocasse distúrbios? Sim, e foi isso que o tribunal julgou provado para determinar que a decisão do governo era legal. Mas ignorou a inexistência de actos concretos por parte do réu. Não se podendo encontrar nenhum acto por parte do tenista, seria lógico concluir que, se esses distúrbios acabassem por suceder, não seria devido aos actos inexistentes de Novak Djokovic, mas aos actos concretos do próprio governo australiano que, através da sua acção concreta (e ilegal, por certo) de deter o tenista, o elevou a uma espécie de mártir e símbolo daqueles australianos que, sendo cidadãos de pleno direito em democracia, exercem o seu legítimo direito político de oposição ao poder. E, no caso de o exercerem de forma violenta, o governo já demonstrou competência na utilização de balas de borracha e gás lacrimogénio num passado muito recente. O facto de grande parte da população (não só na Austrália, mas em todo o mundo Ocidental) ter celebrado a forma infame como a lei foi utilizada pelo ministro para decidir em causa própria é um indício claro de que o amor pela liberdade, a crença na responsabilidade individual e a rejeição da expiação da culpa colectiva são um conjunto de valores mortos e enterrados no Ocidente. A acusação alegou que mesmo sem agir, apenas por ser figura pública, Djokovic pode inspirar terceiros a perverter a ordem pública e o tribunal aceitou o argumento como válido. Desde quando é que o “ser” e não o acto se converteu num crime neste oxímoro chamado Mundo Livre? Se à Greta Thumberg fosse impedida a entrada num qualquer país por ser um símbolo do movimento ecológico, mesmo sob o pretexto de ser para evitar manifestações potencialmente violentas, quantos diriam: é a lei e a Greta não a cumpriu?