Marcelo Rebelo de Sousa tentou ser previdente para se tornar providencial. Nos quase oito anos como Presidente, e no caminho até lá, agiu sempre na antecipação e na frieza do cálculo político. O seu ato zero passou por construir uma imagem que lhe desse o maior dos trunfos: capital político para carregar no botão, quando disso necessitasse. Vender afetos, para colher poder.

A marca Marcelo — de que o próprio foi vendedor, distribuidor e publicitário — tem três dimensões: uma humana (dos afetos, das selfies, do Clavamox na farmácia, do copo vinho, do arquétipo do ‘tuga’, do avô fixe), uma sobrehumana (do “adiantado mental”, do homem que escreve com as duas mãos, que dorme quatro horas, do jurista de excelência) e outra quase desumana (do homem despojado de bens materiais, incorruptível e insensível, mesmo à família).

Vamos à desumanização forçada. Durante a primeira campanha das presidenciais, fiz-lhe, como jornalista, uma pergunta sobre o que pensava do cargo de Primeira Dama, a que o então candidato fez questão de responder por escrito e à mão: “A Constituição não prevê tal cargo”. Para se proteger (tinha “apenas” namorada) foi com dureza — que mais tarde tentaria compensar — que retirou de uma assentada legitimidade ao papel de Manuela Eanes, Maria Barroso, Maria José Ritta ou Maria Cavaco Silva.

Mais do que isso, ao longo do mandato, o Presidente foi utilizando a família no espaço mediático mais como ornamento: fosse para enaltecer as admiráveis previsões políticas do neto Francisco (que com frieza elegeu como “favorito”); para contar como o filho Nuno escapou ao coronavírus na China; ou para explicar que juntava a família no Natal a 23 para a 24 e 25 de dezembro ir beber à ginjinha no Barreiro ou passar tempo com quem é mesmo importante: as pessoas sem abrigo. No fundo, a exposição pública da família teve sempre uma lógica funcional.

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Quando o familygate rebentou nas mãos de António Costa, em março de 2019, o Presidente da República não podia ser menos solidário. Puxou dos seus galões de anti-nepotista e catequizou: “Tenho sobre essa matéria uma posição muito pessoal. Ao longo da minha vida política e também agora no exercício da presidência, que é o entender que família de Presidente não é Presidente. E portanto nisso peco por excesso.”

Quando há um ano foi noticiado que o irmão de Marcelo era sócio do escritório de advogados que tratou da polémica indemnização de Alexandra Reis na TAP, o Presidente apressou-se a dizer que a sua posição era contrária à do irmão. E repetiu a lenga-lenga: “O Presidente é o Presidente, a família do Presidente é a família do Presidente”. E voltou a usar a sua reputação à prova de bala: “As pessoas sabem e conhecem-me: pode ser o meu filho, o meu neto, o meu irmão a terem a sua atividade profissional, isso a mim é completamente irrelevante”.

As pessoas, de facto, conheciam Marcelo. Ninguém contestava a ideia que, em 2007, disse numa entrevista a Maria João Avillez na revista Sábado, num misto de humildade e vanglorio: “Posso ter defeitos grandes, de caráter não”. A imagem de implacável com a família, a firmeza com que se punha acima de todos os outros em matéria de cunhas e favores, deu-lhe sempre a imunidade que precisava.

Mas com o caso do alegado favorecimento das gémeas luso-brasileiras no Santa Maria tudo mudou. O Presidente da República, antes firme, tornou-se titubeante. As certezas deram lugar a falhas de memória (“não me recordava minimamente que tivesse começado assim, dessa forma, com uma carta do doutor Nuno Rebelo de Sousa, meu filho”) e o chefe de Estado viu-se forçado, numa sala dos quintais de Belém, a ter de explicar porque achava que tinha condições para continuar.

Marcelo Rebelo de Sousa acumulou capital ao longo de quase oito anos para momentos fundamentais como este em que demitiu o Governo, se prepara para dissolver a Assembleia da República e que será o grande árbitro na formação de um Governo depois de 10 de março. Por ironia é, precisamente, neste momento que — pela imprudência com que geriu o caso do alegado favorecimento — o Presidente da República surge mais fragilizado.

A família não se escolhe; os atos administrativos que se despacham, sim. Talvez os portugueses o condenem mais por “entregar” o filho (despojado de emoções), do que pela cunha. Mas Marcelo, o previdente, que tudo antecipa, colocou-se na mão dos astros. Aos 75 anos, completados hoje, e quase oito como Presidente, Marcelo faz depender o seu legado, por culpa própria, em algo tão imprevisível como o zodíaco: o caso das gémeas.