No passado dia de 16 de outubro de 2020, em França, a Europa voltou a dececionar os seus: aqueles que são a favor da liberdade de expressão, da liberdade moral e religiosa, da liberdade cívica, daqueles que são, acima de tudo, apaixonados pela liberdade. Naquela tarde, por volta das 17 horas, Samuel Paty, que saía das aulas, viu a sua vida ser abruptamente suprimida, ao ser assassinado por um jovem, de apenas 18 anos, que viu num cartoon de Maomé, uma justificação para decapitar quem o exibisse.

Este ataque, que já é o 33º ataque terrorista na Europa desde do ano de 2000, veio intensificar as tensões existentes entre o presidente turco, Recep Erdogan, e o presidente francês, Emmanuel Macron. De modo a contextualizar, recorde-se que, quando a Turquia decidiu apoiar militarmente o governo do Líbano, França apoiava Khalifa Haftar, opositor desse mesmo governo. No confronto entre a Arménia e o Azerbaijão, pelo controlo da região de Nagorno-Karabakh, Erdogan apoia o Azerbaijão, enquanto Macron apoia a Arménia. Por último, a Turquia tem vindo a pressionar cada vez mais a Grécia e Chipre. Fá-lo através da perfuração das águas cipriotas, de modo a controlar as importantes jazidas de gás. Também neste caso, Macron, com o apoio da UE, enviou navios de guerra para a região, de modo a conter as políticas expansionistas de Erdogan.

Logo após o assassinato de Samuel Paty, Macron afirmou que o Islão é uma religião que atravessa atualmente uma crise em todo o mundo e, ainda, que o Islão radical tem como objetivo violar as leis da República – criando, dessa forma, uma ordem (própria) dentro da sociedade. As respostas não se fizeram tardar, tendo sido vários os líderes de países muçulmanos a condenar as palavras do presidente francês. Erdogan, inclusive, afirmou que Macron sofria de problemas mentais. Posteriormente, apelou a um boicote à compra de produtos franceses.

Assim, é possível compreender que as últimas interações entre os dois homólogos não é novidade, como tem vindo a piorar nos últimos tempos. No entanto, Macron, que tem sofrido um mandato difícil a nível interno e, tenta, a todo o custo, assumir a chefia da UE, conseguiu, pela primeira vez, unir os franceses e a Europa. Como? A resposta é simples e qualquer europeu, mesmo que distraído, sabe a resposta: através da liberdade. Macron ao dizer que nunca desistiria dos “nossos cartoons”, deixou uma mensagem muito clara a todos aqueles que desejam viver em solo francês e, consequentemente, europeu. Não há espaço na Europa para aqueles que não sabem viver em sociedade, não há espaço para fanatismos religiosos. Não há e nunca irá haver. Na Europa irá sempre imperar a liberdade.

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Em seguida foi mais longe, afirmando que o Islão é a fonte do terrorismo em França. Que, caso fosse necessário, iria monitorizar a entrada e saída de mesquitas, de modo a prevenir mais ataques.

Como seria de esperar, as manifestações contra as palavras de Macron, fizeram-se ouvir por todo o Oriente. Em Bangladesh, mais de 40 mil pessoas saíram às ruas com o objetivo de protestar junto da embaixada de França. Também em cidades da Turquia, da Síria, de Israel, do Iraque, do Paquistão e da Palestina houve manifestações. Todos os movimentos defendiam um princípio: “A França é inimiga dos muçulmanos”.

Será?

Talvez seja. França tem de ser inimiga daqueles que não respeitam os valores da igualdade e da liberdade. Macron deu um passo muito importante ao pedir uma Europa unida contra os extremismos e os europeus têm de saber responder com elevação à chamada. Rapidamente.

A Europa tem de ser inimiga, todos os dias, todas as semanas, todos os anos, daqueles que não respeitam os valores que construíram os seus alicerces. Não pode cair num estado de desinteresse pelos seus.

Vejamos: a morte de Samuel Paty, impressionou toda a gente. Mas surpreendeu alguém? Quantos pensaram: “Só mais um morto às mãos de extremistas em França”? Este tipo de situações não pode cair na vulgaridade dos crimes – não foi um simples homicídio. Foi um crime de ódio de cariz religioso. Foi um crime em que alguém, porque estava a mostrar uma caricatura de Maomé, foi barbaramente decapitado. Situações como esta, numa sociedade livre e igualitária, não podem acontecer.

Não se pede que se fechem as fronteiras a refugiados ou que se deportem muçulmanos. Mas a Europa tem de se unir. Necessita desesperadamente de alcançar uma solução para que, cada um de nós, quer estejamos a passear numa feira, a trabalhar num jornal, ou a dar aulas de cidadania, não estejamos expostos a um perigo iminente de terrorismo.

O pensamento de “mais um que morreu por causa de um ataque” não é saudável, não é digno e não pode ser recorrente.

A decapitação de Samuel Paty é também um ataque a todos aqueles que querem continuar a exprimir livremente aquilo que pensam, a todos aqueles que querem partilhar, com a família e amigos, a religião que escolheram, a todos aqueles que querem continuar a mostrar os seus cartoons.

Pois cá, na Europa, nunca desistiremos dos nossos cartoons.