O Partido Socialista e o Bloco de Esquerda, seguidos por outros, lançaram-se para nova revisão da lei do aborto: pretendem que, sem necessidade de invocação de motivo, o aborto possa ser efectuado até às 12 ou 14 semanas de gravidez, em lugar das 10 semanas que inscreveram na lei de 2007. É o que, nestes dias, se debate na Assembleia da República. Além das questões éticas e políticas de sempre, relevam também questões de honestidade intelectual e decência, ligadas à hombridade política (ou sua falta) e à melhor exigência jurídico-constitucional (ou sua omissão).

O problema com a mentira, já sabemos, é entrar pela via da mentira. Depois, ganha-se o hábito e nunca mais pára. O problema com o respeito pelo Direito é começar a faltar-lhe ao respeito. Depois, ganha-se-lhe o jeito e nunca mais pára. O Direito, aliás, está recheado de ferramentas que dão para fazer o bem e o mal, para fazer o certo e o errado – a questão decisiva é sempre o critério e a escolha. É isso que verdadeiramente distingue.

Nos tribunais, o tema principal é a justiça. Nas leis, a questão está nos limites: ninguém pode fazer tudo, mesmo que tenha poder para o fazer. E, olhando aos limites, há-os mais de substância, outros mais de forma. Ambos pesam e importam.  Há limites formais que são intransponíveis, ou devem sê-lo. A democracia, por exemplo, é uma questão formal.

Na questão do prazo para realizar o aborto por livre opção da mãe, a decisão legislativa foi precedida, foi formatada, por pronúncia referendária. Houve dois referendos a esse respeito. Num, em 28 de Junho de 1998, a pergunta foi: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Ganhou o “Não”. Noutro, em 11 de Fevereiro de 2007, a pergunta foi rigorosamente a mesma, isto é, opção da mulher nas primeiras 10 semanas. Ganhou o “Sim”.

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O Tribunal Constitucional pronunciou-se pela legalidade e constitucionalidade dos referendos. E, nesses acórdãos (um, de Abril de 1998; outro, de Novembro de 2006), constam as fontes do prazo de 10 semanas. O prazo de 10 semanas proveio dos projectos de lei do Partido Socialista. Em 1998, o projecto de lei n.º 451/VII, que “preconiza a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, após consulta de aconselhamento, «para preservação da integridade moral, dignidade social e da maternidade consciente», fixando-se em 10 semanas tal prazo”. Em 2006, a Resolução n.º 54‑A/2006, apresentada pelo PS, invocando “o compromisso de suscitar um novo referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, nos termos anteriormente submetidos ao voto popular”; e também o projecto de lei n.º 19/X/1, já então pendente, que dispunha quanto ao novo regime de aborto: “a pedido da mulher e após uma consulta num Centro de Acolhimento Familiar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, para preservação da sua integridade moral, dignidade social ou maternidade consciente”.

Foi sobre as 10 semanas que, por duas vezes, os portugueses foram consultados directamente por um instrumento de democracia directa e de democracia participativa. Esse prazo, aprovado no segundo referendo, fixou-se na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, como seu efeito imediato: “Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando (…) for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.”

O limite das 10 semanas foi consciente e voluntariamente proposto a referendo pelo PS, que o escolhera e propunha; e foi-o, ainda, pelo BE, que, embora propusesse 12 semanas no seu projecto, renunciou a levá-lo a referendo e escolheu alinhar com PS e PSD e aprovar a resolução do referendo.

O PS e o BE podem ter mudado de ideias. Está no seu direito. Mas não está no seu direito agirem como se os cidadãos portugueses também tivessem mudado de ideias. Nisto se joga a verdade e a democracia. Antes de prosseguirem, PS e BE (e outros que também queiram mudar a lei) têm de perguntar aos portugueses o que pensam de novos prazos para o aborto. Num processo legislativo sobre matéria sensível de direitos humanos, objecto de referendos para conhecer e fixar a vontade popular em questões essenciais, é severa quebra de democracia pretender modificar a lei em elementos essenciais, sem convocar a consulta popular com esse objecto.

Éaltura de abordar outra mentira frequente nesta matéria: o direito da mulher ao seu corpo. O direito da mulher ao seu corpo não está em causa no aborto, nem em momento algum se pretende atingi-lo. O aborto não se dirige ao corpo da mulher, mas ao corpo de outro que é todo o seu ser. A gravidez da mulher é a gestação do filho e é o corpo deste (não o da mãe) que é o objecto, o alvo em questão. A algaraviada do “direito ao meu corpo” é uma predeterminada distorção dos factos para confundir os termos do problema e desviar a atenção da realidade física, biológica e humana.

A questão séria, dramática e irremediável que se coloca na temática do aborto é a vida do filho. Por isso mesmo é questão que atravessa séculos e milénios da Humanidade, interpelando e abalando as consciências, provocando intensos debates éticos e políticos, sociais e jurídicos. Se fosse, de facto, um pedaço do corpo da mulher (ou do homem), nem discussão haveria. Se fosse o corpo da mulher, nem lei haveria sequer: estaria compreendido na livre disposição de cada qual; mas não está. Todos sabemos a realidade, mesmo quando fingimos o contrário.

A lei do aborto coloca em questão valores e bens jurídicos de primeira grandeza. Não se trata de um corte de cabelo, ou de prescrever uma dieta, ou de remover cirurgicamente o apêndice. É uma matéria que bule directamente com o direito à vida, não há como negá-lo. Basta passar os olhos, mesmo de passagem, pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional que se debruçaram sobre a matéria: Acórdão n.º 25/84, Acórdão n.º 85/85, Acórdão n.º 288/98, Acórdão n.º 617/2006, Acórdão n.º 75/2010 – dois nos processos de referendo, aprovados; e três de fiscalização da constitucionalidade, preventiva e sucessiva. Todos contêm frequentes referências ao direito à vida, pondo em evidência a sua relevância para as ponderações a fazer.

Por outro lado, em 1997, ocorreu uma alteração da maior importância no nosso regime constitucional: passou a ser possível realizar referendos, designadamente sobre matérias legislativas, como esta. E é claro que, dada a alta sensibilidade dos conceitos e valores em presença, o legislador quis que, apelando a uma maturação ética colectiva, fossem os cidadãos a exprimir directamente acordo ou desacordo com os elementos essenciais definidores da lei. Não podemos andar para trás quanto ao regime democrático e constitucional. O reacionarismo do actual do PS e do BE (e outros) não pode levar a sua avante.

O PS de hoje tem muito pouco a ver com aquele partido fundador da democracia que muitos portugueses da minha geração se habituaram a respeitar e a estimar, em campos políticos e ideológicos muito diferentes. Hoje, o PS surge principalmente como instrumento da extrema-esquerda e, em especial, do BE. Vê-se facilmente na agenda, no tom, na linguagem. É muito difícil distinguir.

No tempo do PREC, passámos semanas a fio, com o PS à frente, a gritar “É preciso respeitar a vontade popular! É preciso respeitar a vontade popular!” Hoje, quem manda no PS foge disso como o diabo da Cruz. Já não gosta da vontade popular. Se gostasse, mantinha a linha e pediria referendo. Como vemos, não quer.

Há também uma propensão para o tricô de manobrismo não-democrático que pode constituir uma severa ameaça. O que se passou com a recusa de eleição para o Tribunal Constitucional da Prof.ª Maria João Vaz Tomé é um sério aviso de instrumentalização partidária do Tribunal e de sua transformação em órgão político da “geringonça”, mascarado pelas togas. Algo do género que vemos, hoje, no Conselho Constitucional de Moçambique ou no Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela – tribunais de topo que administram a “jurisprudência da carimbadela” e usam a pompa como instrumento da fraude autoritária, prontos, se necessário, a colaborar no roubo de eleições.

Há coisa de quatro anos, Isabel Moreira (PS) e José Manuel Pureza (BE) anunciaram um controlo político mais apertado nas audições dos candidatos a juízes do TC. Modelo? Os “hearings” no Congresso norte-americano. Além de confundirem sistemas distintos, a inspiração “trumpista” a que se aludiu mostra absoluta hipocrisia. Na altura, escreveu-se que candidatos do gabarito dos Profs. Jorge Pereira da Silva, Luís Pereira Coutinho e José Eduardo Figueiredo Dias já tinham sido preteridos pela guilhotina mental armada em S. Bento; e houve a sonora e inconcebível confrontação contra o Prof. António Almeida e Costa. A brigada dos controleiros está armada nas salinhas do Parlamento para só deixar passar juízes prontos a jurar o que for preciso, a considerar direito somente o que for professado pela Senhora Reitora do regime e a abjurar tudo o que anteriormente tenham dito ou escrito e divirja do Pensamento Oficial. Enfim, a Ordem!

Voltando ao caso de Maria João Vaz Tomé, é fácil ver, hoje, como se inscreveu já nesta ofensiva da extrema-esquerda. Segundo os jornais, foram relevadas afirmações que são evidências jurídicas e os números mostram que a brigada PS/BE conseguiu influenciar o voto secreto de outras bancadas, de que alguns não saberão provavelmente o que estão lá a fazer – mas o voto secreto protege o serviço feito à extrema-esquerda. Este caso foi um gesto perigoso de intolerância intelectual, de intolerância jurídica e de intolerância académica. A doutrina Nicolas Maduro está em marcha. Também por cá há quem nos queira pôr a caminho do socialismo do século XXI

Quando o PS não tem respeito por pontos de vista diferentes dos seus é porque deixou de gostar do pluralismo e não o quer respeitar, passando a atropelar e a dissolver o ambiente próprio das sociedades e dos regimes democráticos. Quando o PS quer vergar as instituições e os seus titulares para inclinar o campo a seu favor, está a afastar-se da democracia e a aproximar-se da ditadura. Quando o PS afasta instrumentos como o referendo, despreza a vontade popular e o que procura impor são mais caprichos do que propriamente ideias.

A concluir: esta ofensiva política, a pretexto do aborto (outra vez), é uma arremetida de fome pelo poder e um cortejo de desonestidade intelectual, de indecência de processos, de falta de respeito pelo Direito, cavalgando mentiras habituais e querendo romper limites de exercício do poder em democracia. Merece ser vencida. Necessita de ser vencida.