1. Sem sombra de surpresa há… despesa garantida e receita duvidosa; há muito Estado e nenhum estímulo ao emprego pelas empresas; há muito consumo e o seu cortejo de importações; há imenso crescimento e nenhuma razão para o obter. Há enfim, no documento do PS “Uma década para Portugal”, muita fé e pouca realidade.
A única surpresa é a (misteriosíssima) fé socialista mas em quê? Neles próprios? Numa varinha mágica? Em se acharem “naturalmente” melhores e por isso capazes de “acabar com a austeridade em metade do tempo do Governo”, como titulava puerilmente um jornal de referência? Ou fé na mera alternância vista como um milagre que tudo resolve, “mudando, logo conseguirei”? Porventura fé na ideologia que conduziu as mãos que embalaram o documento, mas ela vai ter pela frente dois obstáculos: a fantasia e a actual desconfiança dos portugueses.
A primeira, mais perigosa, traduzida no modo (fantasioso…) como por vezes o documento se relaciona com a realidade, alternando a leveza com a pura intermitência. A segunda, mais difícil de gerir: semeada pela crise e adubada por quatro anos pesados, a desconfiança ensinou aos portugueses a olhar de soslaio para qualquer coisa mesmo que longuinquamente comparável com promessas de amanhãs mais doces (não é sequer preciso que cantem). O povo pode estar cansado, farto, desanimado. Mas não é por isso que vai ir em cantigas.
Tantos anos e alguns desastres económicos depois, o PS esqueceu tudo e não lamenta nada? Ou este “relatório”, para satisfazer as pretensões dos gregos, teve também de atender aos clamores dos troianos? (Felizmente que o demencial imposto sucessório nunca será para cumprir. Não se trata de ser de esquerda ou de direita, serão os portugueses todos a recusá-lo.)
Não é preciso saber muito de economia nem ter grandes pergaminhos na matéria para perguntar como farão os socialistas quando as receitas (previsivelmente) tardarem? Quem patrocinará esse, digamos, “atraso”? Quem pagará a prosápia de “acabar com a austeridade em metade do tempo” quando a realidade mostrar não se poder “dispensá-la” nem tão depressa, nem tão cedo? Quem financiará slogans e arroubos de a todo o custo “ser diferente” do caminho já andado desde Junho de 2011?
Desaproveitando o que já se provou ser aproveitável e deitando ao lixo o que estava novo ou era reciclável?
O pior porém é que nada disto é indiferente, porque não é indiferente a Portugal. Que o PS seja geneticamente “assim” (gastar e depois logo se vê como pagar ou, melhor, como “renegociar” as dividas acumuladas) não é apenas “lá com eles”. É connosco. Apesar da desconfiança – que é real -, não se exclui que haja gente zangada com o Governo e por isso tentada pela mera “mudança” ou que haja até quem, mesmo não acreditando no Pai Natal (fora de época, ainda para mais), se possa deixar escorregar no tão português “logo se vê”. Daqui a um sobressaltado regresso à enésima falência da história de Portugal, pode ir um passo? Pode, mas com uma diferença: no fim da linha já não estará absolutamente ninguém para assinar o cheque de resgate algum.
É como com os remakes: são sempre piores.
2. Isto dito, saúdo vivamente o duplo gesto do PS: que tenha produzido este documento e que o tenha publicitado. Discordar de um modelo ou rejeitá-lo politicamente não impede o reconhecimento da capacidade de iniciativa nem da seriedade com que nele se terá trabalhado. É o meu caso face a este exercício dos socialistas.
Mais: a partir de agora – o que não é de somenos – há novo fermento para amassar o debate público. Não sei se haverá resposta e vontade mas, com elas ou sem elas, o que não há é desculpa. Aguardam-se pois (já estou a aguardar) vozes a dizer “presente” para analisar e debater o que aí ficou: duas escolhas, dois caminhos, duas concepções de sociedade e as duas respectivas ideologias que as suportam, assinadas pelos dois partidos de poder no país.
Pode haver falta de comparência ao debate, mas (aviso à navegação), poderá haver pior. Seria péssimo sinal se o rancor, o ressentimento, a fulanização, o insulto, a intriga, as más maneiras, se sobrepusessem à boa-fé e a inteligência nesta oportunidade que nos conferem a coligação e o PS de pensar um pouco melhor e mais longe o que queremos colectivamente. Não se pode consentir que os ácidos efeitos da crise sejam mais fortes que os deveres que o país exigem a qualquer um. Como seja o de participar e intervir no desenho do seu futuro. Por muito que “país” ou “dever” sejam palavras que – reconheço-o – tenham caído em grande desuso.
3. Em toda esta caminhada do PS/Costa há um paradoxo interessante que ultimamente se tornou ainda politicamente mais interessante, talvez porque já não é possível disfarçá-lo ou fazer de conta que não existe: está aí, à vista desarmada. Falo da dissintonia entre a percepção, ou a “impressão”, que o PS pode ganhar as eleições do outono – que já foram maiores, mas isso agora não interessa – e o caminhar do seu líder. A percepção de vitória não coincide com quem a encarna.
Não há nada do vencedor antecipado em António Costa: nem o pensar, nem a atitude, nem o pisar, nem sequer o tom de voz, muitas vezes despropositadamente estridente. E nem sequer a segurança. Pelo contrário, o que temos testemunhado – basta não estar distraído – é um misto de hesitar e tropeçar, de avançar e recuar; de um pensamento que um dia olha para um lado e no dia seguinte aplaude o outro; do uso claudicante da autoridade política junto dos seus, da agressão verbal e da rejeição liminar como exclusiva forma de crítica ao que quer que o Governo decida, escolha ou produza.
António Costa não parece ter o futuro planeado (se tivesse, ziguezagueava tanto?) nem as coisas “domesticadas” à sua frente. Para não evocar a sua sempre lembrada (por ele) indisponibilidade para algo sequer de parecido com consensos, acordos, convergências. (Portugal não lhe interessa nada?)
Nada disto encaixa muito bem no perfil mais ou menos habitual do político em vésperas de ganhar a sua mais fundamental batalha: um misto de serenidade, segurança, confiança, autoridade e na mão uma bússola de tão bom fabrico que impeça desvios grosseiros na rota previamente decidida.
Mas há rota ou há só uma ideologia datada e que não provou?