Como estavam a chegar os dias de ser levado deste mundo, Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalém”, mas, ao passar por uma povoação de samaritanos, não o receberam. “Vendo isto, os seus discípulos Tiago e João, disseram: ‘Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?’” (Lc 9, 51-54). O Mestre não o permitiu e, pouco depois, para contrariar a judaica antipatia pelos habitantes da Samaria, contou a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37).

Tendo em conta que judeus e samaritanos não se davam (Jo 4, 9), era insólito que Cristo escolhesse, precisamente, um samaritano para herói dessa história. Mas mais estranho é que, sendo uma estória inventada, o vilão seja um sacerdote, que não socorreu o que, tendo sido atacado por ladrões, jazia agonizante no caminho (Lc 10, 31). Outro tanto fez o levita, também ele um homem religioso. Só o samaritano se compadeceu daquele necessitado e, por isso, é exemplo de amor ao próximo.

Obviamente, Jesus ofendeu todos os clérigos, ao dizer que era sacerdote o primeiro caminhante que não socorreu a vítima dos salteadores. Também a menção ao levita, que igualmente exercia funções religiosas, é anticlerical.

Mas, o anticlericalismo de Jesus de Nazaré não se ficou por aí. Mesmo sabendo que os sacerdotes não gostavam, fazia milagres ao sábado, o dia do Senhor, quando poderia organizar-se de forma a só fazer curas nos outros seis dias da semana. Dada esta rebeldia de Jesus, não estranha, portanto, a recorrente antipatia do sinédrio, que chegou ao extremo de o condenar à morte.

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Para além do anticlericalismo fanático que, desde a sua fundação até hoje, promove a perseguição da Igreja, há um anticlericalismo cristão, que é o que Jesus ensina, que se fundamenta no princípio da separação entre o poder temporal e o poder espiritual: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Neste sentido, o sacerdócio cristão é sobretudo serviço e não poder, como o próprio Jesus disse, ao referir que não tinha vindo à terra para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela redenção da humanidade (Mc 10, 45).

O Papa Francisco denuncia recorrentemente o clericalismo eclesial. E, em boa hora, o Relatório de Portugal ao Sínodo de 2021-23 propôs-se “passar de uma Igreja exageradamente centrada na autoridade e acção do clero, para uma Igreja sinodal e missionária, na comunhão e participação activa de todos os seus membros”.

Com certeza que a hierarquia da Igreja tem uma missão fundamental, que não pode ser subestimada, mas que não justifica atitudes autoritárias por parte do clero, que não é dono da Igreja, nem dos fiéis. Por isso, o Papa não pode deturpar a fé, nem demitir um bispo sem uma razão justa; o bispo não pode, sem uma causa grave, proibir um presbítero de exercer o ministério sacerdotal; nem nenhum padre pode impedir um leigo de receber os sacramentos a que tiver direito, nem proibir, onde esteja permitida, a comunhão na mão, mesmo que prefira administrá-la directamente na boca.

Nas questões doutrinais, por serem de natureza técnica, cabe ao Papa, em união com o colégio episcopal, determinar o que, segundo as Sagradas Escritura e Tradição, se há-de crer e praticar. Como a hierarquia não é proprietária da doutrina, mas depositária da fé, e “o que se requer dos administradores é que sejam fiéis” (1Cr 4,1), não pode contradizer os princípios fundamentais da doutrina cristã. Se, por absurdo, um Papa ou bispo negasse uma verdade de fé, incorreria em heresia e ficaria excomungado, cassando ipso facto na sua função eclesial.

O clericalismo considera o clérigo como único protagonista da acção eclesial, relegando os leigos para uma função subalterna. Certamente, na administração dos sacramentos que exigem a potestade sagrada, o sacerdote é insubstituível. A Eucaristia é, certamente, o centro e raiz da vida da Igreja, mas a acção litúrgica, em que o padre desempenha uma função essencial, não esgota a missão eclesial. Decerto, os leigos podem e devem participar na liturgia, sobretudo espiritualmente, mas também como acólitos, leitores, cantores, etc., mas a promoção do laicado não deve ser feita por via da sua clericalização. Com efeito, o que é específico do apostolado laical é a evangelização da sociedade em todos os seus níveis, através do exemplo, da palavra e do trabalho.

Na família, os pais cristãos estão chamados a ser os primeiros catequistas dos seus filhos e a iniciá-los na vivência das virtudes cristãs e da vida sacramental. A catequese paroquial e escolar deverá contribuir para a evangelização dos filhos, mas nunca para substituir o papel dos pais como primeiros e principais educadores da fé, sobretudo pelo seu exemplo e palavra. Se as crianças virem, em casa, desmentida a doutrina ensinada na Igreja, a catequese paroquial provavelmente não será eficaz.

Se, na família, os principais agentes da evangelização são os pais, avós e outros familiares próximos, os profissionais católicos devem ser os protagonistas do apostolado cristão no mundo do trabalho e da cultura. A Igreja precisa, com urgência, de milhões de evangelizadores leigos, que preguem, com o seu exemplo e a sua mestria profissional, a verdade que é Cristo, através dos ‘Evangelhos’ das suas respectivas competências.

O Evangelho da vida corresponde aos biólogos e médicos, a quem cabe provar cientificamente que, desde o primeiro momento, o feto tem vida própria e, por isso, o aborto é um assassinato de uma vida humana inocente.

O Evangelho da criação deve ser pregado pelos físicos, a quem cabe explicar que não há contradição entre a fé e a ciência e que a criação do mundo por Deus não contradiz a teoria do Big Bang, formulada por um sacerdote católico, amigo e colega de Einstein.

O Evangelho da cultura compete aos artistas e literatos católicos, que devem anunciar a beleza e elevação da verdadeira arte, por vezes confundida com produtos tóxicos que envenenam o entendimento e a vontade.

O Evangelho da afectividade deve ser apregoado pelos psiquiatras e psicólogos, os quais devem provar a falsidade da ideologia de género e reconhecer que, no respeito pela identidade sexual e pela dignidade do amor humano, é possível ultrapassar eventuais disforias e construir uma existência pessoal e familiar feliz e autenticamente cristã.

O Evangelho do bem comum é da especial competência dos leigos católicos que se disponibilizam para a política, respeitando a liberdade dos fiéis em questões opináveis e propondo medidas que, satisfazendo as justas ânsias de justiça e de liberdade do povo, sejam coerentes com a doutrina social da Igreja.

Dois mil anos volvidos sobre a parábola do bom samaritano, o anticlericalismo de Jesus ensina que, também agora, a humanidade ferida pelo clericalismo e pelas falsas ideologias, precisa urgentemente de bons samaritanos que, com caridade e competência profissional, anunciem a verdade que nos faz verdadeiramente livres (Lc 8, 32).