O esboço do que se passou no Banco Espírito Santo e no Grupo Espírito Santo não é novo. Já o temos, pelo menos, desde a intervenção que levou à expropriação do banco aos seus accionistas para entregar a parte boa aos cuidados do Fundo de Resolução, a menos má das opções disponíveis naquele momento.

Mas a cada peça nova que é conhecida não deixamos de abrir a boca de espanto pelo fartar da vilanagem que foram os últimos meses da liderança de Ricardo Salgado.

A auditoria forense feita pela Deloitte, a pedido do Banco de Portugal, conta-nos como se derreteram mais uns milhares de milhões de euros em poucos meses, em novos financiamentos à área não financeira do grupo ou em garantias bancárias prestadas a entidades venezuelanas. Mostra-nos como prosseguiu a venda a clientes de instrumentos financeiros emitidos por empresas que já se sabia estarem falidas ou como se fez uma selecção daqueles que receberam o investimento feito em papel comercial.

Mas diz-nos, sobretudo, da desfaçatez com que tudo isto foi feito. Todos estes actos foram praticados depois do grupo estar já sob vigilância do Banco de Portugal e obrigado a cumprir um conjunto de determinações do supervisor.

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Tudo ocorreu, portanto, debaixo das barbas da autoridade. Os gestores do BES olharam com uma ignorância olímpica para as ordens do Banco de Portugal. E o Banco de Portugal olhou, durante mais de meio ano, com uma ignorância olímpica para as sucessivas violações das suas ordens praticadas pelos gestores do BES.

Vejamos um exemplo paradigmático detalhado na auditoria da Deloitte. No dia 3 de Dezembro de 2013 uma carta do Banco de Portugal dirigida a Ricardo Salgado (na sua qualidade de presdidente do Espirito Santo Financial Group e com conhecimento ao Presidente da Administração do BES) determinava “a constituição de uma conta à ordem (conta escrow) alimentada por recursos alheios ao grupo ESFG (…) com um montante equivalente à dívida emitida pela ESI e detida por cliente do BES na sequência da colocação na respectiva rede de retalho, devendo essa conta ser exclusivamente destinada ao reembolso dessa dívida”.

Com esta ordem, o supervisor pretendia que se salvaguardassem meios financeiros para pagar aos clientes do retalho (sobretudo pequenos e médios clientes) as obrigações decorrentes da colocação de papel comercial. Esse dinheiro devia vir da área não financeira do grupo (por isso os recursos e as garantias não poderiam vir do ESFG), eventualmente na venda de activos, que ficariam reservados nessa conta “escrow”. Uma conta “escrow” é contratada para apenas poder ser movimentada para as finalidades constantes do acordo inicial. É, por isso, muito fácil de verificar pelas partes envolvidas o cumprimento ou não de um contrato de uma conta desse tipo.

Perante esta ordem do Banco de Portugal, o que é que aconteceu?

Primeiro, não foi aberta nenhuma contra “escrow”, mas sim uma conta de depósito normal que podia ser movimentada por dois administradores da ESI e que não definia quaisquer condições para a sua movimentação.

Depois, não havendo qualquer restrição contratual, essa conta foi utilizada para tudo mais um par de botas menos para a finalidade que o supervisor tinha determinado: serviu para reembolsar o papel comercial a clientes que não eram do retalho, 500 milhões a cliente “private banking”, presume-se que bem mais endinheirados, e mais 240 milhões a clientes de “outros segmentos”; em Fevereiro de 2014 saíram 120 milhões para amortizar empréstimos do BCP e ao Montepio Geral; e 74 milhões saíram também em Fevereiro para reembolsar um cliente que tinha conta aberta na sucursal do BES da Zona Franca da Madeira.

Estas são algumas das 21 violações às determinações do Banco de Portugal que a Deloitte aponta na auditoria. E a pergunta que uma criança de dez anos faz é simples: porque é que o Banco de Portugal não acompanhou, verificou e fez cumprir as ordens claras que tinha transmitido? No caso concreto desta conta o controlo era muito simples. O Banco de Portugal já tinha detectado problemas, tinha o grupo sob apertada vigilância, as guerras na família já eram públicas, as trocas de correspondência entre supervisor e supervisionado já eram azedas. Será que o supervisor ainda acreditava estar a lidar com pessoas de bem? É uma credulidade que só nos pode deixar incrédulos. Até porque não é a primeira vez que a supervisão do banco central comete o mesmo erro.

Há seis anos ouvimos outro governador, Vítor Constâncio, dizer na Comissão de Inquérito Parlamentar do BPN que “não havia razões para duvidar de Oliveira Costa” até 2008. Na mesma altura, ouvimos José Alvarez, responsável pela supervisão, afirmar que “não havia razões objectivas para se por em causa a idoneidade das pessoas que estavam à frente da instituição (BPN)”. Porque, acrescentou: “eu também ouvia rumores sobre o BPN, como qualquer cidadão. Por isso mesmo, estando na inspecção, fiz o trabalho que considero diligente no sentido de apurar se havia, realmente, alguma situação irregular. O BPN foi alvo de um escrutínio das autoridades de supervisão contínuo”. Eficaz, como se viu.

O governador actual, Carlos Costa, foi primeiro ao Parlamento dizer que não destituiu Ricardo Salgado mais cedo porque teve receio da legitimidade jurídica para o fazer. Agora ficarmos a saber que nem fez cumprir o que tinha ordenado ao GES.

Seis anos depois a supervisão não aprendeu nada? Dá ideia que o Banco de Portugal gosta de ser enganado. Continuada e repetidamente.

Ricardo Salgado e alguns dos seus pares do GES praticaram uma gestão criminosa (adjectivo). Se são ou não criminosos (substantivo) a Justiça há-de encarregar-se de o dizer e é bom que o faça depressa. Não sei se neste caso já devia estar alguém preso, como dizem alguns responsáveis do PSD. Mas por aquilo que já se sabe ninguém ficaria chocado se assim fosse.

A questão que deve também colocar-se é se Carlos Costa e outros responsáveis do Banco de Portugal devem manter-se nos seus cargos sabendo-se o que já se sabe.

Não se trata de misturar planos nem de transformar o polícia em alegado criminoso. Cada coisa no seu lugar e a cada um as suas responsabilidades. E o Banco de Portugal já demonstrou que não tem estado à altura das suas, temendo mais os prevaricadores do que estes o temem a ele. Enquanto se mantiver esta cultura de supervisão bancária medrosa, tardia e pouco zelosa só podemos ficar à espera do próximo escândalo.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com