As últimas sondagens sobre a eleição presidencial brasileira do próximo domingo tendem a confirmar a sabedoria universal, segundo a qual o vencedor do primeiro turno acaba sempre por ganhar, no caso, a candidata do PT e actual presidente Dilma Roussef, que está à frente nas sondagens; marginalmente, mas está. Efeito da propaganda maciça do PT com base nos seus 12 anos no poder ou da proverbial prudência dos eleitores no mundo inteiro ou, simplesmente, do facto de faltarem ao candidato do PSDB, Aécio Neves, perto de 20 milhões de novos votos para ganhar, a verdade é que o actual «empate técnico» é favorável à «incumbente».
A não ser que se esteja a repetir o efeito da «espiral do silêncio de que já falei noutra ocasião e à qual alude, implicitamente, um colunista como Merval Pereira no «Globo», quando recorda a «tese de parte dos eleitores tucanos [do PSDB] não revelarem seu voto nem nas pesquisas, para não sofrer pressão, e esse “voto oculto” poderia fazer a diferença na hora decisiva». E conclui com uma observação decisiva: «Ganha enorme importância mais uma vez São Paulo, onde o PSDB está abrindo grande vantagem».
Com efeito, como também já sugeri, esta oposição extremada entre o Brasil portador dos valores e das energias modernizadoras e o Brasil socialmente sub-desenvolvido e assistido do Norte e Nordeste, que explica a economia da eleição brasileira, remete por sua vez para as relações do Brasil com o resto do mundo. Asaber, o lugar que o Brasil desempenhará no concerto internacional dos actuais processos de globalização e da «nova guerra fria» em curso: do lado das grandes democracias (desde a América do Norte ao Japão, passando pela UE) ou do lado dos BRICs e do resto dos emergentes, como tem sido cada vez mais o caso do Brasil do PT.
Ora, ganhe quem ganhar, «o Brasil está rachado», como escreve outro colunista do «Globo», Pedro Doria: «Metade de um lado, metade do outro. Alguém vencerá por margem estreita. Se o tom na internet permanecer como está, o caminho do país é bloqueado». Esse bloqueio, todavia, não impedirá Dilma, em caso de vitória, de prosseguir a política externa brasileira no sentido da «nova guerra fria» movida contra o chamado «imperialismo», ao contrário do que sucederia, sem ruptura necessária da autonomia brasileira, com uma vitória de Aécio e a formação de um governo encabeçado pelo PSDB, ao qual Fernando Henrique Cardoso (FHC) forneceria o exemplo de uma política independente em relação aos Estados Unidos, mas avessa às perigosíssimas aventuras «orientalistas» da Rússia e da China, que raramente deixaram de votar juntas no Conselho de Segurança da ONU, bem como dos demais «emergentes», desde o Irão a Angola, etc.
E para nos certificarmos daquilo que está em jogo nesta eleição presidencial do ponto de vista internacional nada melhor do que ler a entrevista do cientista social português Boaventura Sousa Santos (BSS), que tem fortes ligações institucionais ao Brasil do PT, a uma rede brasileira. Há-de haver muita gente no Brasil que, por mera reacção anti-ianqui, historicamente compreensível, não se dê conta das implicações externas do seu voto de domingo, mas BSS não é desses. Pelo contrário, o mais importante de tudo para ele era o risco de o PT perder o poder, permitindo «um retorno ao tradicional alinhamento do Brasil com os USA». Manifesta-se assim contra o tipo de «relações bilaterais» mantidas por FHC. Em vez disso, considera que «a política iniciada por Lula e a criação do banco de desenvolvimento do bloco económico que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul incomodam os norte-americanos, que tentam neutralizar os BRICs», cujo novo banco seria «uma alternativa ao Banco Mundial», pois «como os Estados Unidos dominam o mundo fundamentalmente com o sistema financeiro, porque já não têm capacidade industrial para isso, tudo que seja ameaça ao sistema financeiro do dólar é, para eles muito grave».
Não é nada evidente que a batalha económica entre os BRICs e os países mais desenvovidos seja esta. Mas é certo que a batalha política entre as democracias ocidentais e os seus inimigos passa por aqui e o Brasil representa hoje, por assim dizer, a cunha ocidental mais avançada da globalização, da qual faz parte essa feroz guerra ideológica dos «emergentes» contra um «ocidente» ao qual o Brasil pertence a todos os títulos, apesar dos laços de dependência económica em relação a países como a China. Ora, o PT tem usado essa ideologia para legitimar o que lhe resta de «esquerda» frente ao tipo de social-democracia sul-americana que FHC desenvolveu e que Aécio, se ganhasse, poderia relançar. Apesar do descaso da opinião pública, é isto também que está em jogo no próximo domingo. Não é pouca coisa nem para o Brasil nem para o mundo.