É uma vergonha perante a História que Putin emporcalhe o 9 de Maio, Dia da Vitória, com o seu aventureirismo de invasor. Quando os exércitos soviético e ocidentais – os Aliados – venceram a Alemanha em Maio de 1945, os nazis estavam na posição que é, hoje, a de Putin: o agressor.

Por isso, a pergunta por todo o mundo devia ser esta: e se fôssemos capazes de fazer de 9 de Maio o Dia Mundial de Solidariedade com o Povo Ucraniano? Em todo o mundo. Na rua. Em todo o lado, em cada ocasião, em todas as oportunidades. Uma grande manifestação popular de base, de povo para povo, de povos livres para um povo atacado.

Enquanto Vladimir Putin, articulado com outros Estados neossoviéticos, se adornasse na Praça Vermelha com a sua parada belicista, despudorada assinatura da guerra que move ao vizinho e “irmão” da Ucrânia, os cidadãos livres do mundo inteiro fariam chegar aos ucranianos palavras e gestos de solidariedade. Por que não?

Passado o dia, sobrará a necessidade.

A guerra na Ucrânia causa inquietação e perplexidade. Por um lado, é absolutamente intolerável. Por outro lado… continua a ser tolerada. Já lá vão dois meses e meio. Meses de morte e destruição, de ignomínia e atrocidades. Já devia ter acabado. E dizem-nos que ainda durará mais meses, se não mais anos. Não pode ser!

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Esta guerra, declarada pela Rússia de Putin, não atinge só hospitais, maternidades e escolas. Não usa só a arma ignóbil da violação de mulheres sem conta, nem só o terror sobre velhos e crianças, nem só torturas, mutilações e execuções sobre homens civis. Não se limita a bombardear bairros e aldeias como estratégia terrorista. Não se fica por arrasar por completo cidades, como Mariupol. Não se fica por repetir ameaças levianas de 3.ª Guerra Mundial e de escalada até ao holocausto nuclear.

Não. Vai ainda mais além, até à raiz de tudo isto: despreza, espezinha e destrói o Direito Internacional. Esse é o rasto mais perigoso desta guerra: por cada quilómetro invadido (e o mundo a ver), por cada mulher violada (e o mundo a ver), por cada criança morta (e o mundo a ver), por cada torturado e executado (e o mundo a ver), por cada bombardeamento sobre civis (e o mundo a ver), por cada crime de guerra que acontece (e o mundo a ver) é o Direito Internacional que regressa décadas ou séculos para atrás, aos tempos do não-direito. O Kremlin considera-se isento do Direito Internacional – e nem o Direito Internacional Humanitário escapa ao seu cilindro. Actua sem lei sem se tornar fora-da-lei, porque, para o Kremlin, direito é poder e o poder é seu. O que quiser, é. O que disser, faz-se.

Putin não vê, nem na Europa, nem na Ásia – os dois continentes da Rússia –, assim como no mundo inteiro, a começar pelas Nações Unidas, ninguém com a determinação de o parar. Por isso, continua. E continuará até ser parado.

Penso que Putin só pode ser parado pela opinião mundial, que não quer esta guerra, nem que se torne maior e pior. Mantendo-se a resposta, no plano militar e das sanções, no quadro progressivo que tem sido definido em apoio da Ucrânia invadida, a cidadania tem que voltar a intensificar a expressão da sua voz.  Dá ideia que adormeceu, delegando nos Estados o exclusivo das acções. Depois de uma grande onda espontânea de manifestações populares por todo o mundo, a expressão pública da indignação e do repúdio desvaneceu-se. Tem feito – está a fazer – menos do que pode e deve.

A gravidade do que acontece na Ucrânia e a perigosidade dos riscos em que todos estamos impõem que nos manifestemos continuamente até que a guerra acabe. Não esqueçamos como foi o vigor do levantamento popular em todas as capitais europeias (e outras cidades), ao lado da Ucrânia e contra Putin, que levou as instituições europeias a tomarem rapidamente posições enérgicas, como nunca acontecera e ninguém previra. E o mesmo aconteceu noutras capitais do mundo e com os seus governos.

Não há razão para parar. Só há razão para parar, quando o Direito Internacional prevalecer, a invasão acabar e as tropas de Putin recolherem.

A opinião mundial tem força, a opinião mundial tem poder. Tem mais poder e mais força do que provavelmente imagina. Putin não tem respostas contra a liberdade civil, não pode ameaçar a opinião comum desarmada, não tem forma de parar a indignação pela guerra e a exigência de paz dos cidadãos de todo o mundo. A China também não pode ignorar a opinião mundial. E Putin menos pode ignorar uma China atenta, que não ignora a opinião mundial. Os russos, apesar da censura, também acabarão por conhecer a verdade e ouvir a opinião mundial.

Posto sob risco de extinção pelo Kremlin, o Direito Internacional está em tempo exactamente oposto: não está em recuo, está em afirmação, na linha do progresso das últimas décadas. Mesmo nesta crise, tem havido manifestações dessa dinâmica civilizada, ainda que, por ora, soterradas sob a máquina bélica e demais brutalidade das tropas de Vladimir Putin. Lembro apenas uma: a 16 de Março, o Tribunal Internacional de Justiça, órgão jurisdicional das Nações Unidas, ditou que “a Federação Russa suspenderá imediatamente as operações militares (…) no território da Ucrânia”; e “garantirá que quaisquer unidades militares ou irregulares dirigidas ou apoiadas por si (…)” não prosseguirão aquelas operações.

Pode bastar um impulso da cidadania nas ruas para que o aparelho decisório e diplomático das Nações Unidas e de outras instâncias e autoridades internacionais se ponha finalmente em acção, fazendo calar as armas e repor a ordem do Direito e da Humanidade.

O que faz falta, na verdade? Faz falta voz, faz falta clamor.

Falta voz e clamor ao lado do Direito. O Direito precisa muito desse clamor. Não queremos a guerra? Temos de o dizer. Queremos que a invasão acabe? Temos de o gritar. Estamos com as vítimas, com as crianças, com as mulheres, com os velhos? Temos de o manifestar. Queremos que os políticos não os esqueçam? Temos de mostrar que os não esquecemos. Queremos paz? Temos de a exigir. Queremos que os justos não desistam? Temos de mostrar que não desistimos. Todos nos ouvirão, se o dissermos. Na rua. E tanto melhor quanto mais vezes e mais alto o dissermos. Na rua.

Se em Londres, Paris, Estocolmo, Varsóvia, Nova Iorque, Madrid, Tóquio, Seul, Monreal, Lisboa, Porto, Rio de Janeiro, Berlim, cidades mil por todo o mundo, a voz popular se fizer ouvir outra vez, directamente, continuamente, em vigílias, desfiles e manifestações de diverso tipo, a paz estará ganha.

De forma ordeira, sinalizando que não queremos outra guerra depois desta e que também queremos poder viver em paz e amizade com a Rússia e com o povo russo, nós (os cidadãos do mundo) temos, nesta altura, à disposição a chave do problema. Basta descermos à rua, a exigir o necessário. Ninguém consegue parar o vento com as mãos. Ninguém conseguirá travar o efeito deste clamor genuíno da gente comum, ora exigindo ou cantando, ora rezando ou gritando. Em regime 24/24, 7/7.

A solução, é claro, será sempre encontrada pela diplomacia e pela política. Mas é preciso olear de novo a diplomacia e empurrar outra vez a política. É preciso dizer que estamos fartos da guerra e temos pressa da paz.

Onde estão os partidos políticos? Onde estão as suas estruturas nacionais e internacionais? Onde estão os movimentos cívicos? Onde está a sua capacidade de mobilização? Onde está a sua capacidade de articulação entre todos por uma grande causa comum, a Paz? Onde está a sua expressão de cidadania? Que valem realmente, quando o mundo tanto precisa que se manifestem?

Neste mundo, que se tornou um lugar muito perigoso, não precisaremos de mobilização militar, se fizermos a mobilização civil suficiente.

É um momento de encruzilhada deste século. A aventura de Putin foi a última e vamos já retomar de vez a alameda da paz por onde a Europa acreditava estar a caminhar? Ou o “putinismo” é uma ruptura que nos leva de volta ao sec. XX e seus horrores ou a outros séculos anteriores, de ainda mais guerras por fronteiras? A escolha também depende de nós.

E é uma hora decisiva para o Direito Internacional. Creio que ganhará, com o impulso vigoroso da opinião civil por todo o mundo.