Depois de consumar a aquisição de 95% dos “media” tradicionais através da troca de “publicidade institucional” por propaganda informal, os senhores que mandam nisto resolveram preocupar-se com as “redes sociais”. Segundo uma senhora que é ministra de uma coisa por ser filha daquele sr. Vieira da Silva que era ministro de outra coisa (estou a brincar: são de facto dois génios numa única família), o governo vai “monitorizar” o “discurso de ódio” na internet. A ministra explica que estará interessada, cito, “na forma de propagação deste discurso nas plataformas ‘online’ e nas mensagens que contém”, além de “identificar autores e monitorizar processos de queixas”. De caminho, recolhem-se “dados que fundamentem linhas de ação política” e presta-se “formação a todos os actores que tenham que lidar com a matéria”. Ou seja, o “discurso de ódio” será censurado, criminalizado e, façamos figas, os seus perpetradores punidos.

Em teoria, acho muito bonito. O ódio é um sentimento desagradável e nada justifica que, em vez de se darem bem, as pessoas andem para aí a rebaixar o próximo (ou o anterior). Na prática, o enredo turva-se: quem distingue o que é ódio do que não é? As autoridades, com certeza. E quem concedeu às autoridades a capacidade de fazer semelhante distinção? Deus Nosso Senhor ou, mais provavelmente, as autoridades elas mesmas. O problema passa pela subjectividade do ódio.

Como não se deve argumentar mediante exemplos, vou usar três ou quatro. Toda a gente, excepto os próprios “fascistas”, concorda que criticar “a ciganada que vive do rendimento mínimo” se enquadra no “discurso de ódio”. Mas desejar o fuzilamento dos “fascistas” que criticam “a ciganada que vive do rendimento mínimo” parece ser uma expressão salutar de benevolência e amor. Outro exemplo? Toda a gente, excepto os próprios, concorda que demonstrar simpatia pública pelos actuais presidentes dos EUA e do Brasil se integra no “discurso de ódio”. Mas venerar os currículos dos srs. Fidel ou Maduro é apenas uma forma de humanismo e um sintoma sadio de “consciência revolucionária”. Um penúltimo exemplo: elogiar o benfiquista André Ventura é “discurso de ódio”. Mas admirar o leninista Francisco Louçã, e arranjar-lhe cargos institucionais e profissionais onde ele possa espraiar a respectiva lucidez, é matéria de elementar bom senso. Por fim, discordar das lendas do “aquecimento global” talvez constitua um “discurso de ódio”. Mas alinhar com a fúria da pequena Greta contra os que têm de ser pendurados em cordas de piano por discordarem das lendas do “aquecimento global” é um progressismo louvável.

No fundo, e à superfície, não é muito complicado. O “discurso de ódio” é aquilo que um poder autoritário define enquanto tal. Dado que o poder, aqui, é marxista, o “discurso de ódio” são as opiniões de que a esquerda não gosta. E quem diz as opiniões, diz os sujeitos que as emitem, os livros e os filmes e as canções que as veiculam, as estátuas que as simbolizam e o sistema económico e social que as permite. E, lá está, as páginas nas “redes sociais” que as reproduzem.

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Não vamos dramatizar. O governo não quer mal a ninguém. Somente pretende conhecer que bitaites odientos percorrem a “net”, os nomes dos bandalhos que os cometem, os números de telefone, as moradas físicas e electrónicas, os laços familiares, os postos de trabalho, etc. E tudo para meros efeitos estatísticos, incluindo a produção de gráficos em Excel, o silenciamento, as ameaças pessoais, a chantagem no emprego e restantes minudências vitais à estabilidade do regime e à coesão da sociedade. Numa hipotética candidatura a um cargo na função pública, ou na privada em risco de expropriação, é naturalíssimo que um “xenófobo” ou “homofóbico” seja preterido em favor do moço que oscila entre o BE e o PS, abomina “os americanos” e tem pela teocracia iraniana um carinho especial.

É claro que, na ânsia de “monitorizar” desgraças, o governo podia olhar para dentro e “monitorizar” a corrupção, a incompetência e, para não desprezar a filha do sr. Vieira da Silva, o nepotismo. Em vez disso, optou por fiscalizar o que os cidadãos escrevem no Facebook. Também é importante.

Quase tão importante quanto ignorar os nossos defeitos é admiti-los. Eu admito a minha ingenuidade, ou o meu optimismo. Durante os tristes anos recentes, acreditei que a “Europa” seria um obstáculo aos apetites mais drásticos de um governo socialista sustentado por comunistas. Acontece que o mundo da Covid deixou a Europa num caos e derrubou as últimas barreiras do decoro e das obrigações dos gangues caseiros. Num ápice, com o conluio do prof. Marcelo e a paralisia cerebral das gentes, o PS acaba de tomar conta disto, de repartir o saque com BE e PCP e, se sobrarem, umas migalhas com o dr. Rio. Hoje, nem levemente se disfarçam as nacionalizações, as negociatas, as nomeações, o culto dos chefes, a “ilegalidade” de ajuntamentos, os patrocínios da banca, a subjugação da “oposição” e dos “media”, o populismo reles contra “o estrangeiro” e, enfim, a vigilância das “redes”. Os inimigos da democracia têm razões para festejar o arranjo. Os restantes são livres de odiá-lo. Ou eram.