Firmemente decidido a regressar aos tempos em que era um partido que cabia dentro de um minúsculo táxi, o CDS passou os últimos dias a tentar convencer-nos que o Governo tem um plano insidioso para converter as casas de banho das escolas portuguesas numa versão moderna de Sodoma e Gomorra.

Armados com o despacho que regula a lei sobre “a autodeterminação da identidade de género” nas escolas, os centristas decidiram entrar num mundo de fantasia, cheio de conspirações e de ameaças imaginárias. E, daí, partiram para o uso da insinuação e do engano para o combate político.

A principal obra de ficção foi escrita pelo líder da Juventude Popular, Francisco Rodrigues dos Santos — também conhecido no partido, embaraçosamente, pelo nome “Chicão”. Num texto publicado no Facebook, aquele que alguns veem como futuro líder do CDS usa uma estratégia irresistível para quem prefere confundir a discutir: com uma tesoura, corta frases do despacho e retira-as do contexto, dando-lhes um significado totalmente diferente do original — como o Observador já explicou aqui.

Escreve, por exemplo, isto: “[O despacho promove] o direito de cada criança em escolher o acesso às casas de banho e balneários escolares ‘de acordo com a opção com que se identificam’”. A expressão “de acordo com a opção com que se identificam” existe, de facto, no texto original, mas diz respeito aos casos em que os alunos têm de usar uniforme escolar — a citação não consta do artigo relativo às casas de banho. Mas a confusão convém a Francisco Rodrigues dos Santos porque, assim, cria a ilusão de que a escolha por uma determinada casa de banho dependerá de um mero capricho juvenil, podendo ser mudada de dia para dia, quem sabe se com terríveis propósitos lascivos.

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Noutra passagem, o líder da JP escreve que o despacho quer “‘impulsionar práticas’ que visem ultrapassar as diferenças entre as características biológicas individuais — às quais o Governo parece chamar de ‘imposição de estereótipos’”. No texto, a expressão “imposição de estereótipos” não é usada para “ultrapassar as diferenças entre as características biológicas individuais” — aliás, esta ideia absurda não aparece em nenhuma parte do despacho. Francisco Rodrigues dos Santos quer dar a entender que o despacho defende que as diferenças entre rapazes e raparigas são irrelevantes e que, portanto, todos devem usar a mesma casa de banho. Obviamente, trata-se de um logro. O que o despacho faz é tratar do problema muito específico das crianças que estão em processo de mudança de género. Aliás, o texto é claro e nem se percebe como alguém de boa fé se pode enganar ao lê-lo. O despacho fala expressamente em “criança ou jovem em processo de transição social de género”. Ou seja, aplica-se apenas a jovens transexuais e não a qualquer um que pretenda explorar as casas de banho do sexo oposto.

Mais e pior. O CDS, com razão, costuma exigir o envolvimento dos pais no tratamento, pelas escolas, de temas mais sensíveis. Pois bem: o despacho prevê que a aplicação destas medidas deve “respeitar a vontade expressa dos pais, encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem”. Ironicamente, portanto, aquilo que o deputado do CDS João Gonçalves Pereira chama no Facebook de política “anti-família” é aplicada, imagine-se, com o envolvimento direto da família.

Por fim, há um problema básico de lógica na posição do CDS. O líder da JP escreve que “não é concebível que se procure à força abolir as naturais diferenças entre meninos e meninas”. Ora, o que está em causa é o exato oposto disto. É precisamente por haver diferenças “entre meninos e meninas” que o despacho pretende defender os jovens que estão a passar de “menino” para “menina” ou de “menina” para “menino”. Se o despacho entendesse que não havia diferenças, então também não haveria motivo para mudanças.

À esquerda, há muitos devaneios relativos à igualdade de género que o CDS podia criticar com honestidade e rigor. Mas, neste caso, o partido está simplesmente a desperdiçar a sua credibilidade para falar sobre o tema quando isso for mesmo necessário. Podíamos imaginar que esta posição se deve ao facto de os centristas não saberem ler ou, em alternativa, não quererem ler. Mas a verdade é que eles sabem ler e querem ler — mas, lamentavelmente, querem ler no despacho do governo o que lá não está. Francisco Rodrigues dos Santos, João Almeida e João Gonçalves Pereira (três altos dirigentes do CDS, alguns muito próximos de Assunção Cristas) preferiram criar um mundo de fantasia para poderem ficcionar uma guerra cultural que não existe.