Na guerra não há vencidos nem vencedores, todos perdem. Nas guerras assimétricas ainda pior, porque o resultado de um cessar-fogo será sempre instável quando o adversário inimigo não deixar de existir. Enquanto o Hamas estiver no poder – e se não abdicar da recusa de reconhecer Israel como Estado soberano – nunca um cessar-fogo será estável e duradouro. No entanto, este foi abençoado por todas as partes e pela comunidade internacional.
A teoria de que os acordos de Abraão, também apelidados de acordos de normalização, não contribuem para a paz na região só pode resultar de uma de duas possibilidades: ou é má-fé ou ingenuidade. O primeiro argumento que desmente essa teoria é o facto de os Palestinianos terem sempre preferido a via da violência como resposta aos acordos de paz assinados por Israel com o Egito e com a Jordânia. Aliás, se os acordos bilaterais assinados com o Egito e com a Jordânia tivessem trazido a paz para a região, o Presidente Sadat não teria sido assassinado.
Antes de falar sobre os intervenientes do cessar-fogo e como se aí chegou, gostaria de elencar alguns pontos que reforçam o papel importante dos acordos de normalização. Como primeiro ponto, o Eliseu, na sua mensagem de agradecimento pelo cessar-fogo, atribui o mesmo ao papel de diversos países (mencionando uns e omitindo outros) na realização deste acordo: sabendo nós que a Alemanha e a Noruega não estiveram envolvidas, basta ler nas entrelinhas quem são os destinatários dessa mensagem. Por outro lado, o primeiro-ministro israelita, na conferência de imprensa realizada em conjunto com o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, referiu os acordos de normalização como fator importante para se atingir um cessar-fogo. Estes dois argumentos seriam suficientes para atribuir um papel significativo aos Emiratos e, por extensão, à Arábia Saudita, no alcance de um acordo de tréguas.
O Egito saiu claramente como o vencedor deste impasse, tornando-se um broker natural, ao ser o único interlocutor do Hamas e ao negociar, primeiro, com o Qatar e a seguir com os Emiratos, e a tornar concretizável a realização de um cessar-fogo na região. O regresso do Egito como mediador foi o volte-face de um país que começou por ser ostracizado pelos Americanos. Sabe-se que tem adquirido meios de defesa à Rússia, Itália e França (a recente compra de aviões Rafale ao grupo Dassault foi tema de discussão em Washington no que respeita à perda de um “cliente” na indústria de defesa norte-americana) em detrimento dos Estados Unidos, desde que o ex-presidente Barack Obama começou a menorizar o presidente egípcio Abdul Al-Sisi. A visita do ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito a Jerusalém, com o objetivo de discutir e solidificar as tréguas em Gaza, é mais um indício da importância do Cairo na região.
O acordo entre o Egito e o Qatar no que respeita à ajuda económica e financeira deste último à Faixa de Gaza, reforça o papel daquele. Temos de ter em conta que em Doha existem duas fações: uma pró-iraniana e outra mais próxima dos Emiratos, o equivalente ao embate entre o Manchester City e o Paris Saint-Germain – dois clubes de futebol pertencentes a dois príncipes Qataris que se degladiam por títulos europeus. Tendo isto em conta – e para dar outros exemplos desta guerra surda entre o Irão e a Arábia Saudita –, veja-se o exemplo da Líbia e o conflito entre Bengazi e Tripoli. A dinâmica é parecida com a de Gaza. Em resumo, o presidente Al-Sisi não só demonstrou que o Egito ainda conta como um ator no palco do Médio Oriente, como se tornou, ainda, o interlocutor chave para a Faixa de Gaza.
Por outro lado, enquanto o sentimento de segurança e prosperidade continuar a existir no interior da sociedade israelita, não são os conflitos que vão acabar com a polarização política no país. Esta polarização é um fator democrático que representa as diversas opiniões em Israel. Percebo – e até concordo – que a manutenção excessiva de um primeiro-ministro no poder pode denegrir a imagem de uma democracia. Mas esta premissa vale tanto para Israel, como para a Alemanha de Angela Merkel.
A energia positiva da Bolsa de Telavive demonstra o otimismo existente em Israel e o acordo de Yair Lapid, líder da oposição no parlamento e do partido centrista Yesh Atid (representativo da classe média não religiosa) com Naftali Bennet (antigo ministro da Defesa de Benjamin Netanyahu e líder da coligação de partidos de direita, denominada Nova Direita), que permite afastar o atual primeiro-ministro do poder, demonstra uma vez mais que para os Israelitas há vida para além do conflito com os Palestinianos.
A ideia de excluir o Hamas na reconstrução de Gaza será difícil de se impor na prática. Enquanto o status quo continuar, um novo conflito não é de excluir. Se isso acontecer com Yair Lapid, ou Naftali Bennet, a primeiro-ministro, a resposta poderá ser completamente inesperada e muito diferente da que seria assumida por Benjamin Netanyahu. Veremos como será recebida, sobretudo por aqueles que criticam a permanência do atual primeiro-ministro. Será igualmente interessante ver como esta nova coligação vai aproveitar a onda de entusiasmo em Israel relativamente aos acordos de Abraão.
Se estes acordos de normalização não tiveram qualquer influência visível entre os Palestinianos, não significa que não tenham já um impacto social que permite hoje a existência de intercâmbio de turistas, de estudantes e de relações entre a sociedade civil israelita e os Emiratos, que eram absolutamente impensáveis há cerca de três anos.
Em conclusão, há vida para além da paz.