As redes sociais permitem aos utilizadores a total expressão das suas paixões. O Facebook é palco de visões idealistas de modos de vida, enquanto que o Twitter permite a cada um expressar em 280 caracteres as paixões das suas almas. Confesso que sou um utilizador frequente desta rede social e que nela vejo quotidianiamente os estados de alma que por ali são expostos em relação a todo o tipo de opinião política.

Foi num desses momentos de análise da minha página, que me deparei com um tweet de um capitão de abril, o coronel Sousa Castro, onde afirma que “os Judeus, como dominam a finança mundial, compraram e têm as vacinas que quiseram”. Tendo recebido comentários à altura, o capitão atribuiu essas críticas a “buldogues sionistas”, acrescentando que, tendo “judeus, quer na familia, quer no rol de amigos” não se estava a referir a judeus “mas a sionistas.”

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Estas afirmações não são novas, não acabarão com a polémica à volta de Sousa Castro e não merecem um tratado histórico sobre o antisemitismo, especialmente o da esquerda, família política com a qual o senhor se identifica. Merecem sim uma notas breves sobre diversos aspectos relacionadas com as mesmas.

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A primeira nota é sobre a responsabilidade de ser capitão de abril. Ter sido um dos intervenientes da Revolução não traz direitos ao senhor capitão, mas sim um rol de responsabilidades e de exemplos. Veja-se o exemplo do capitão inglês Tom Moore, que morreu recentemente com 100 anos – e o papel que teve a reunir fundos para combater o Covid-19. O que fez Sousa Castro? Apertou o gatilho nos teclados do twitter, fulminando tudo e todos, porque como capitão de abril, o senhor tem direitos e, quando não está na apicultura, é um feroz analista da situação política portuguesa e internacional.

A segunda nota tem precisamente a ver com as ordens honoríficas que o senhor recebeu da República Portuguesa. Mais uma vez, estas ordens são portadoras de responsabilidade. Não são apenas para ficarem numa vitrine na sala lá de casa. A meu ver, as afirmações justificam a revisão das ordens que o senhor recebeu. Abril não terá sido com certeza feito para isto.

Por último, surpreendeu-me o conhecimento geopolítico e astuto de Sousa Castro. Conhecedor profundo das atribuições das vacinas negadas ao povo palestiniano, entende o mesmo que o Governo de Israel foi responsável por tamanha malfeitoria. Mais uma vez, a ignorância e a má fé do senhor são facilmente descontruídas. Os palestinianos têm um governo – que se mantém no poder sem eleições – e os seus membros são os responsáveis pela estratégia de compra de vacinas e pelo plano de vacinação do seu povo. Bem sei que, tal como acontece com um capitão de abril, os palestinianos só devem ter direitos, não têm deveres. Como não sigo o que se passa na mente dos governantes palestinianos, apenas sei que todos em Israel, sem excepção, fazem parte do plano de vacinação.

O antisemitismo de esquerda não começou, nem acabou, com Corbyn. A grande polémica da definição de antisemitismo publicada pelo IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance) acontece precisamente pelo facto de se considerar antisemitismo quando se acusa o Estado de Israel, ou os israelitas, de serem nazis, ou de participarem numa qualquer conspiração imaginária. Esta definição não tem poder jurídico para forçar a uma condenação. Mas tem um poder moral para chamar os nomes às coisas. A motivação e as palavras de Sousa Castro são claramente antisemitas.

Não existem diferenças entre uma congressista republicana norte-americana que afirma que os Rothschild criaram um laser para incendiar a Califórnia ou um capitão de abril que diz que os Judeus, por dominarem as finanças mundiais, são os primeiros a ser vacinados. Ambos merecem ser criticados e responsabilizados, não só pelas afirmações que fizeram, mas pelo papel que representam. A liberdade de expressão é um direito fundamental das nossas democracias, mas se queremos verdadeiramente preservar esses mesmos valores democráticos devemos ser conscientes de que as afirmações que proferimos ou escrevemos têm consequências. Se assim não for, não me parece que abril tenha tido qualquer influência nas ideias deste seu capitão.