Já por diversas vezes referi que o Chega quer tomar o lugar do PS no controlo do Estado. Depois de ter conquistado um eleitorado mais zangado, André Ventura prepara-se para aliciar outro, mais moderado, preocupado com a estabilidade do seu emprego e que os serviços sociais do Estado sejam prestados atempadamente e com qualidade.

Assistimos na Europa e nos EUA a um alinhamento do eleitorado. Se até há uns anos os operários e os funcionários públicos votavam mais à esquerda, a propagação da agenda ‘woke’ fê-los virar para a direita. Continuam a ser de esquerda em questões económicas, mas tornaram-se de direita em temas como a imigração (o que não significa necessariamente racismo), a eutanásia e as políticas de igualdade de género. Tal como sucedeu nos EUA (onde este eleitorado correu para os braços de Trump), no Reino Unido (onde votou Brexit e em Boris Johnson), ou em França (onde vota Marine Le Pen), também em Portugal há um eleitorado de esquerda que se sente desprotegido nessas causas e que viu o PS desperdiçar uma maioria absoluta dada de bandeja temendo que os socialistas não sejam mais capazes de manter o Estado social que tinham como garantido desde os anos 80. Tal como noutros países, esse eleitorado que votava à esquerda pode votar numa direita estatista e colectivista.

O esforço mais visível de Ventura no sentido de captar este eleitorado foi no debate de encerramento da discussão do Orçamento de Estado para 2024. Nesse dia, Ventura dirigiu-se aos pensionistas e garantiu que os protegerá nem que isso custe a Portugal 10, 20, 30 ou 40 empresas como a TAP. Já nas jornadas parlamentares, em Abril, Ventura prometeu não cortar pensões nem mesmo recorrer ao truque da inflação para o fazer. Ainda ontem repetiu o número político no congresso do Chega. O PSD perdeu os pensionistas para o PS em 2015 e o Chega quer ir buscá-los porque os pensionistas viram o seu poder de compra esfumar-se com a inflação e também porque são quem mais receia a degradação do serviço nacional de saúde.

Outra faixa do eleitorado apreensiva com o futuro são os funcionários públicos. Além da estagnação nas carreiras, assistem à degradação dos serviços e das suas condições de trabalho. O Chega não lhes proporá uma alteração significativa no modo de progressão das carreiras nem sequer no acesso a uma melhor formação. O mais certo é que lhes acene com melhores salários e promessa de estabilidade, ou seja, um regresso ao que se fazia no passado como se o passado ainda existisse. Não interessa como, interessa a promessa. Um sinal para que esse eleitorado se sinta reconfortado e mude de lado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um dos projectos de André Ventura é a criação de um sindicato, como referi também neste espaço. Chama-se Solidariedade e é uma tentativa do Chega substituir na rua a CGTP e a UGT. O processo não está fácil, como se viu na tentativa frustrada de Ventura se aproveitar da manifestação dos polícias no Açores, mas é de salientar que o objectivo existe. E, lado a lado com este, encontramos uma estratégia em tudo semelhante à da esquerda.

Esta nova realidade acarreta três consequências: em primeiro lugar, o Chega pretende conquistar o eleitorado do PS. Os socialistas alimentaram o monstro e agora terão de o confrontar no seu próprio território. Em segundo lugar, esta alteração afasta por completo a dicotomia esquerda/direita feita até agora. A divisão que coloca de um lado o PSD, a IL e o Chega e do outro o PS, o PCP, o BE, o Livre e o PAN não existe mais. É precisamente por isso que é impossível uma coligação PSD/IL com o Chega. Os respectivos programas políticos não são só diferentes; são antagónicos. Não há acordo possível com o Chega porque não há um mesmo chão. São projectos diferentes e contraditórios. Mais natural seria uma coligação do Chega com o PS, o que só não sucede porque os dois partidos se prepararam para lutar pelo mesmo eleitorado. Até os respectivos líderes parecidos e o culto da personalidade do chefe é comum nos dois partidos.

A terceira consequência diz respeito ao eleitores. À escolha de quem vota. Uns primam pela manutenção da segurança que têm, outros pela esperança que não vêem. O país encontra-se num momento definidor. E da mesma forma que não há segurança sem esperança, não há mudança sem confiança e um separar de águas devidamente esclarecedor.