Um dos factos mais curiosos e num dos momentos mais interessantes da história europeia é a coroação de Napoleão Bonaparte, na Notre-Dame de Paris, num domingo frio de 2 de Dezembro de 1804, 11 anos, 10 meses e 11 dias depois de a França ter decapitado Luís XVI. Um dos países mais avançados do continente, referência intelectual e política de homens como Thomas Jefferson, punha termo a um período revolucionário prestando vassalagem a um novo poder absoluto.

A coroação de Bonaparte é uma contradição da história, mas não é a única. Em Portugal, temos várias: o assassinato de um rei considerado culpado por os partidos não se entenderem, a admiração dos fundadores do PS por republicanos que apelaram à colonização de África ou o endividamento do país como motor de desenvolvimento.

No passado dia 10 de Março assistimos a outra contradição. Portugal está economicamente estagnado há praticamente 30 anos porque não criámos riqueza suficiente para as políticas que se prometeram. Em virtude disso, o Estado teve problemas de financiamento e as empresas ficaram descapitalizadas. Foi a primeira crise. A económica. A segunda (que se juntou à primeira) foi social e derivou do travão nos investimentos público e privado. O atraso na ferrovia, a estagnação dos salários que não acompanhou a subida dos preços da habitação, os protestos das forças de segurança, as greves dos funcionários judiciais, a falta de professores nas escolas e as dificuldades de gestão do SNS não surgiram por acaso. Por fim, às crises económica e à social, somou-se a política que, contrariamente ao que se diz, não surgiu com o fim do bipartidarismo, na noite de 10 de Março. Numa das muitas contradições da história, a crise política nasceu com a conquista da maioria absoluta pelo PS, quando o país precisava de levar por diante certas reformas que António Costa não queria fazer sob o risco de afastar, por vários anos, o PS do governo.

Perante este cenário, e se a história dos povos fosse lógica e linear, seria de esperar um voto massivo numa mudança na estratégia económica do país. Ao invés, o partido que mais cresceu na votação foi aquele que deu nome ao mal-estar generalizado, apontou o dedo aos seus responsáveis, mas que propôs basicamente o mesmo que o PS. O facto é curioso, mas não é único, como vimos. E não o é porque uma mudança de rumo implica reconhecer o erro. Pior: exige pagar o preço desse erro. Em 1804, os franceses não sentiram qualquer contradição. Pelo contrário, ao coroarem Napoleão fizeram as pazes com o passado e eximiram-se das suas responsabilidades. Da mesma forma, ao votar no Chega, parte do eleitorado reafirmou uma orientação económica e política já seguida, mas com outras pessoas, personagens que desejam limpas e puras. Agiram como se não houvesse passado. Naturalmente, uma análise atenta dos 50 deputados eleitos por André Ventura desfaz qualquer ilusão. Mas a verdade é que quem agora diz que chega aplaudiu ou calou-se quando alguns diziam que era demais.

A história dos povos é tão complexa e contraditória quanto a mente humana. E, para o bem e para o mal, segue debaixo do olhar curioso de quem não se devia espantar com o que não é novidade.

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