A tempestade perfeita, improvável, aconteceu com os preços da energia a dispararem, ameaçando neste momento a recuperação económica e colocando no horizonte a perspectiva de uma crise como a que vivemos na segunda metade da década de 70 do século XX. Os países da União Europeia correm o sério risco de serem os mais afectados, pela sua dependência do gás natural da Rússia mas também pela rigidez ditada por regras por tudo e nada e que a UE se recusa a adaptar mesmos quando as crises assim o recomendam. E, no caso português, juntamos a isso os excessos da tributação.
Com o que está desenhado no horizonte para a economia global, que nos afectará inevitavelmente, e face aos condicionalismos que o Governo enfrenta neste momento, não ter o Orçamento do Estado aprovado e viver em duodécimos pode até não ser uma má notícia. Seria seguramente mais fácil manter as “contas certas” sem danos financeiros, desde que se reunissem condições para realizar a despesa financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Mas vamos primeiro ao choque energético. A subida do preço dos combustíveis é obviamente explicada pela alta dos preços do petróleo, mas essa alta torna mais difícil aguentar a carga de impostos. O Governo ensaiou manipular as preocupações climáticas, numa tentativa de não prescindir de receita fiscal, mas acabou por ceder e dar o dito pelo não dito. Baixou dois cêntimos a gasolina e um cêntimo o gasóleo, o que durou um fim-de-semana. Claro que isso não resolveu problema nenhum e irritou ainda mais quem precisa de se deslocar para trabalhar, já que hoje está generalizada a informação do peso dos impostos. Foi mais fácil moderar a subida do preço da electricidade.
Queremos todos muito combater as alterações climáticas, mas nesta fase de alta da energia os governos precisam de ter um especial cuidado para não virarem as opiniões públicas contra uma política que é tão necessária. Não se faz a transição energética de um dia para o outro e mesmo aquela que está na agenda da União Europeia terá custos. Além disso, esta crise que afecta especialmente a Europa mostra como estamos atrasados na implantação das energias renováveis e como estamos tão dependentes da Rússia – de onde chegam 41% das importações europeias de gás, o epicentro desta subida dos preços da energia.
Os especialistas do sector de energia esperam que esta alta de preços, que começou no gás e se contagiou ao petróleo e ao carvão, comece a moderar-se no próximo ano. Para já, e de acordo com a The Economist, o cabaz de preços do petróleo, gás e carvão, aumentou 95% desde Maio. E até que esta subida se dissipe assistiremos a danos que ninguém verdadeiramente sabe se se traduzirão, ou não, numa crise de contornos mais difíceis de combater.
A economia chinesa cresceu 4,9% no terceiro trimestre deste ano, a mais baixa taxa num ano, reflectindo não apenas os problemas que está a enfrentar com o endividamento do sector imobiliário, mas também, e já, os efeitos da crise energética, que se tem traduzido em interrupções de fornecimento de electricidade com impactos na produção.
Sendo (ainda) a China a fábrica do mundo, as disrupções nas cadeias de fornecimento provocadas pela pandemia e a escassez que já se fazia sentir nas matérias-primas e subsidiárias têm agora uma nova fonte de agravamento. Há fábricas chinesas a interromper a produção por falta de energia.
Se a procura muito robusta, que se sentiu logo após o fim dos confinamentos, já enfrentava a escassez da oferta – incapaz de reagir ao mesmo ritmo – , a instabilidade produtiva criada pelo choque energético agrava ainda mais essa diferença. Estão lançadas as sementes para um círculo vicioso.
A escassez de matérias primas reduz a oferta que, perante uma procura robusta, aumenta os preços, subida de preços esta que é ainda alimentada pela subida dos custos da energia. E assim entramos numa crise de estagnação ou mesmo recessão com inflação, que mereceu o nome de estagflação na segunda metade da década de 70 do século XX.
Para Portugal, mais inflação será positivo desde que permita, por via da ilusão monetária, corrigir alguns excessos salariais, especialmente na administração pública, e desde que torne a nossa dívida menos pesada, por via de taxas de juro ainda mais negativas. Este último efeito só será possível se o BCE se atrasar na subida das taxas de juro e se os mercados financeiros continuarem a confiar na disciplina orçamental.
E eis que esta perspectiva de uma crise à década de 70 do século XX nos apanha a caminho de uma crise política. Também foi assim que vivemos boa parte dos choques energéticos dos anos 70 do século XX, o primeiro em 1973 e o segundo em 1979. Pagámos caro depois com dois programas de estabilização do FMI. Os tempos são outros e, aparentemente, o Governo de António Costa faz questão de impedir que as alterações orçamentais propostas pelos partidos que o apoiam redundem em desconfiança dos mercados financeiros. Face ao que pedem PCP e BE essa pode ser uma tarefa muito difícil sem ilusionismos.
Viver em regime de duodécimos – o que acontece quando o Orçamento não é aprovado – não parece, assim, ser um mau cenário, face aos condicionalismos políticos e às perspectivas económicas globais. Desde que se consigam aprovar as despesas financiadas pelo PRR, as contas públicas resultantes de duodécimos acabariam por ser financeiramente mais austeras, teríamos contas mais certas.