Será que vale a pena falar de Francisco Louçã? A deputada à Assembleia Municipal de Lisboa Aline Hall de Beuvink teve de falar, porque Louçã exibiu no seu programa da SIC, com pretensões humorísticas, um vídeo em que ela falava do chamado Holodomor, em que morreram à fome, em 1932 e 1933, por acção directa e planeada de Estaline, vários milhões de Ucranianos. Ela, descendente de Ucranianos, teve de falar porque foi alvo de uma tentativa de ridicularização por se ter pronunciado sobre uma imensa tragédia que afectou o povo dos seus antepassados. Quem não se sentiria no dever de o fazer? Quem não se veria obrigado pela sua consciência a mostrar que o mais desumano horror nada tem de divertido ou propício ao gozo?
Mas nós? Nós, que conhecemos Louçã de há muito e que estamos mais do que habituados ao seu costumeiro delírio de virtude e ao seu desprezo pela verdade, será que vale a pena gastar tempo para reflectir no que representa a personagem? Não o sabemos nós já? Não conhecemos nós já demasiado bem o fundo de crenças a partir do qual ele fala e que Marcelo Rebelo de Sousa honrou através da sua nomeação para o Conselho de Estado, o órgão consultivo do Presidente da República? Não sentimos nós todos já a degradação institucional que a presença dessa figura ali representa? Vale a pena dizer mais alguma coisa?
Vale. A completa obscenidade do programa da SIC – e deixo apenas aqui a SIC de lado porque me pretendo concentrar em Louçã — não permite sequer alternativa. O conselheiro de Estado Francisco Louçã deu ali uma imagem perfeita da sua dimensão política e humana, que não pode passar sob silêncio. Está lá tudo: o arremedo de humor que não é senão um esgar de desprezo; o fanatismo que lhe permite decretar, sem qualquer lugar para dúvida, quem caminha na direcção certa da história e quem contra ela marcha; o cinismo disfarçado de virtude; o sentimento de impunidade assegurado pela pertença à categoria política que o regime mais venera – a esquerda; a indiferença por relação à verdade e à busca dela; o desejo latente, visível a cada esgar, do desaparecimento de todos os seus adversários.
É esta criatura, eternamente acabada de chegar de um dos vários lugares da história em que o terror fez lei, e disposta a acomodar a propaganda às dimensões permitidas pelos costumes locais, esperando alarga-las, que desprezivelmente procurou rir-se das palavras de Aline Hall de Beuvink sobre o horror do Holodomor, onde a fome induzida por Estaline levou milhões de Ucranianos à morte e muitos à prática do canibalismo.
Beuvnik refere, na sua resposta ao conselheiro de Estado, o clássico de Robert Conquest, The Harvest of Sorrow, e também a obra mais recente de Anne Applebaum sobre a “fome vermelha”. São leituras muito recomendáveis, mas em relação às quais Francisco Louçã se encontra imunizado. Como se encontra imunizado, já o disse, a tudo aquilo que respeite à preocupação com a verdade e com a sua busca. As características que enumerei no penúltimo parágrafo só podem atingir o grau de desenvolvimento que nele adquirem com base numa condição: a redução do universo mental a uma dimensão que exclui qualquer contacto com a diversidade das opiniões, que é o estado natural da vida política democrática. Dito de outra maneira: a sua tão celebrada “inteligência” é o resultado directo de uma insensibilização radical face à experiência humana, só possível por uma espécie de ignorância do mundo dos indivíduos dedicadamente cultivada. É inútil, por isso, esperar dele qualquer compreensão do sofrimento humano e do horror em grande escala que o cria. Encontra-se metodicamente protegido desses transtornos e não tenciona, em caso algum, abdicar dessa protecção.
Louçã – é uma evidência – não é um democrata. É um espírito autoritário – totalitário, se preferirmos a palavra — vindo de outros tempos, de tempos de horror e morte que não o podem em nenhuma circunstância chocar. É neles, no desejo do seu regresso, que vive de facto. O seu tempo é o dessa memória. E, embora se tenha sem dúvida habituado à ideia que não testemunhará em vida o seu retorno, a imagem dos doces fantasmas do terror, agindo e premeditando a destruição de quem se lhes opõe, habita em permanência a sua cabeça. Como se poderia ele não rir da grande fome ucraniana e das palavras de Aline Hall de Beuvink? O terror é-lhe perversamente familiar, enquanto que a ela lhe surge como a introdução de algo radicalmente estranho – “estranho” como uma substância que o ser próprio se recusa a incorporar — na sua vida, e algo que lhe permanece estranho, de uma estranheza terrível, por mais que a história o descreva em todas as suas minúcias. É essa estranheza que lhe faz exprimir o horror do canibalismo. E é a intimidade – dialéctica, como mandam as regras — com o terror que permite a Louçã gozar com ela. E connosco. Um perfeito canibal espiritual.