Aqui há vários anos, deixei praticamente de ler coisas sobre o horror dos totalitarismos. Em parte, porque acreditava que sabia tudo o que de essencial havia a saber sobre o fenómeno – o que não deixava de ser em parte verdade, a partir do momento em que se percebe que há um princípio de ilimitação do crime intrínseco a esses regimes -, em parte porque estava farto de pensar o pior e apetecia-me passar mais tempo a pensar o melhor. Mantive esta regra informal, com uma excepção ou outra, durante muito tempo. E ainda me esforço para a manter, sendo as excepções aquelas que me parecem úteis para iluminar a nossa situação presente.

E é por a história da Revolução Cultural chinesa (1962-1976) apresentar, à superfície – quer dizer: longe da abissal profundidade da morte de milhões –, algumas semelhanças com o movimento woke, que me pus a ler coisas sobre essa época de terror que provocou o habitual entusiasmo imoderado de muitos intelectuais ocidentais. Reli o que tinha em tempos lido de Simon Leys (pseudónimo do grande sinólogo belga Pierre Ryckmans) e li pela primeira vez o último volume, The Cultural Revolution, da triologia que Frank Dikötter dedicou ao regime maoista. É claro que entre o horror totalitário e a democracia há um caminho imenso que não se percorre de um só passo. Mas, como não poderia deixar de ser, há uma continuidade entre as paixões do homem totalitário e as paixões do homem democrático. Não poucas vezes descobrem-se as primeiras no interior das segundas.

Depois da Grande Fome (1958-1962), provocada pelo “Grande Salto em Frente” de Mao Tsé-tung, que fez – pela própria fome ou pelos massacres que à época tiveram lugar – pelo menos cerca de 45 milhões de mortos, Mao sentiu o chão debaixo de si pouco seguro. A maneira que encontrou para resolver o seu problema foi a chamada “Revolução Cultural”, que não foi senão uma gigantesca guerra civil, fomentada pelo próprio Mao, em que se opuseram constantemente facções contrárias, todas elas reivindicando-se do “pensamento Mao Tsé-tung” (é nessa altura que é publicado o Pequeno Livro Vermelho e que o “culto da personalidade” atinge dimensões nunca vistas), que Mao apoiava alternadamente.

Os chefes das facções eram todos eles, num certo sentido, criaturas de Mao, a começar por Lin Piao – dado a fobias extremas, nomeadamente no que respeita à água: o simples ruído da água corrente provocava-lhe diarreias – e pela mulher de Mao, Chiang Ch’ing, e a acabar no mais ignorado dos Guardas Vermelhos. Mao ia-os apoiando até suspeitar que lhe procuravam suceder. De facto, o seu grande medo era o de que algum deles se tornasse o “Khrushchov chinês”, isto é, que lhe fizesse a ele o que Khrushchov fez a Estaline, o seu modelo, no XXº Congresso do PCUS. Para eliminar essa possibilidade era necessário inventar a continuação da “luta de classes” – “Nunca esquecer a luta de classes!” era um slogan da altura – no interior do regime e fingir que tudo começava do zero. Diz o excerto de um discurso de 1958 recolhido no Pequeno Livro Vermelho que a pobreza e a miséria são “coisas más na aparência, mas boas na realidade. A pobreza leva à mudança, à acção, à revolução. Sobre uma folha branca, tudo é possível; podemos escrever e desenhar o que há de mais novo e de mais belo”. Mao fartou-se de escrever e de desenhar.

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A educação devia, em consequência, ser inteiramente revista, de modo a fazer desaparecer qualquer vestígio do ensino burguês, incluindo as avaliações dos estudantes segundo os critérios tradicionais. Destruíram-se templos e bibliotecas. A linguagem do “pensamento Mao Tsé-tung” tornou-se a linguagem única admissível. Criaram-se personagens com biografias fictícias, como o bravo soldado Lei Feng, que resumiam em si, para servir de exemplo, todo o fervor maoista, no seu combate contra “monstros e demónios”.

No meio desta guerra civil destinada, do princípio ao fim, à consolidação do seu poder e à eliminação de todos os seus adversários – até Lin Piao, o fiel dos fiéis, encontra a morte em 1971 -, perde-se a conta ao número de vidas desaparecidas e às humilhações sem nome a que são submetidos todos os que vão sendo declarados, por uma facção ou outra, inimigos do maoismo, tal como não há limite para as autocríticas, que florescem a velocidade inédita. Não falta sequer o ocasional canibalismo, mais trivial durante a Grande Fome, um canibalismo teoricamente justificado pela luta de classes: “Canibalismo? Era a carne de um proprietário! A carne de um espião!”, explicava o chefe de um comité revolucionário.

Quando Mao morre, em 1976, a festa acaba. Em vida, conseguiu evitar o aparecimento de um “Khrushchov chinês”, isto é, de alguém que o condenasse. Condenados, depois, foram alguns dos que o apoiavam. Entre os muitos julgados, encontrava-se Chiang Ch’ing, a viúva de Mao e figura eminente do chamado Bando dos Quatro: “Eu era o cão do Presidente. Mordia quem quer que fosse que ele me mandasse morder”, declarou para a eternidade.

É difícil transitar do horror totalitário para a mais pacata vida das democracias, mas está longe de ser impossível, como disse antes, encontrar certas tendências totalitárias no movimento woke: a ideia de que se pode começar tudo como numa página em branco; a multiplicação das humilhações públicas e das consequentes autocríticas; a recusa da educação segundo os padrões clássicos; o derrube das estátuas e dos vestígios do passado; a transformação da linguagem; e por aí adiante.

De facto, nem sequer é necessário ir tão longe quanto isso. Basta pensar no nosso manso Portugal de hoje. Querem alguém que seja tanto uma criatura do seu mestre como Eduardo Cabrita? Trata-se obviamente de uma ficção inventada por António Costa. Só existe politicamente por isso e deixará de existir mal o mestre lhe diga para desaparecer. É por isso que é inútil interrogá-lo sobre o que quer que seja.

Querem combates contra “monstros e demónios”? É ler, por exemplo, os relatos que a imprensa divulgou das Jornadas parlamentares do PS em Caminha ou toda a escola de pensamento que gosta de “malhar na direita”.

Querem culto da personalidade? Ascenso Simões publicou recentemente um artigo tão grotesco sobre Costa que me recuso a detalhá-lo aqui, algo do género “Sigamos o pensamento António Costa a caminho da liberdade, com o sol dentro do nosso coração”. Mas basta lembrar que foi ele o primeiro director da campanha de Costa para as eleições de 2015, aquelas que ele perdeu para Passos Coelho. Foi substituído por causa de uns cartazes muito maoistas que anunciavam uma brilhante página em branco na qual tudo podia radiosamente ser escrito e por uns outros em que apareciam fotografias de indivíduos que narravam os tormentos pelos quais passaram durante a troika e que eram, de facto, funcionários de uma Junta de Freguesia lisboeta do PS. E, é claro, Ascenso Simões alçou-se à celebridade nacional com o seu famoso artigo onde lamentava o pouco sangue que correra no dia 25 de Abril e onde reclamava a destruição do Padrão dos Descobrimentos.

Querem um Lei Feng lusitano? Esperem um bocado, que ainda vai aparecer algum jovem empresário socialista – chamemos-lhe Valentim Feliciano – que interpreta as sublimes directivas de Costa na execução do PRR com o exemplar fervor da juventude que conta, aquela que traz consigo o futuro, a paz dos povos e a mensagem do “pensamento António Costa”.

Estamos, é claro, muito longe do horror totalitário, graças a Deus, e não estou a ver Pedro Nuno Santos e Fernando Medina a acusarem-se um ao outro de serem o “Khrushchov português”, mas, à nossa escala, não é, no conjunto, um espectáculo bonito. Enfim, a humanidade é mesmo ligada por características comuns e, por mais diferentes que sejam os tipos antropológicos criados pelo totalitarismo e pela democracia, há sempre umas semelhançazinhas aqui e ali.