Há dias, numa comissão do Parlamento Europeu sobre Covid, um eurodeputado holandês perguntou à representante da Pfizer se a empresa havia testado a eficácia da vacina na prevenção da transmissão do vírus. Após umas voltinhas, a senhora lá acabou por responder: não.
Não sendo exactamente uma surpresa, é a prova de que nos mentiram ao longo de meses. E essa mentira, produzida pelas farmacêuticas e repetida para efeitos de legitimação pelas entidades de saúde, permitiu aos governos uma violação sem precedentes dos direitos individuais em sociedades que tínhamos por democráticas. Por um tempo, medonho e ridículo, o “certificado de vacinação”, que distinguia os homens puros da sujidade restante, foi condição indispensável para viajar, fazer desporto, frequentar restaurantes, tomar um café no “shopping”. Nada, excepto a propensão de uns para a opressão e a propensão de outros para a obediência, justificaria isto. Porém, dentro do cenário alucinado em que nos vimos metidos, o “argumento” empoleirava-se num único critério: a vacina, ou a falta dela. Os vacinados, lindos meninos, não contaminariam ninguém, ou praticamente ninguém. Os não vacinados confundiam-se com o próprio Belzebu, e, salvo nos países em que literalmente os prenderam, andavam por aí a infectar inocentes. Entre parêntesis, não convinha notar que os inocentes estavam, juravam-nos, protegidos pela Pfizer ou pela Janssen, logo a questão da infecção não se punha. Mas, na famosa “pandemia”, não pôr questões era a regra número um, a número dois e a número três. Adiante.
No mundo real, muito antes da confirmação da senhora da Pfizer, os factos depressa mostraram que, infelizmente, a vacina não impedia a transmissão do vírus. E depressa os poderes vigentes adaptaram o discurso – sem admitir a adaptação. Como mentiram antes, continuaram a mentir: toda a gente, do sr. Fauci aos “especialistas” que por cá animavam “telejornais”, surgiu a explicar que a vacina apenas serve para diminuir a probabilidade de doença grave ou de morte. Quando inquiridos a propósito, o que aliás era raríssimo, todos juraram que nunca, nunca, nunca tinham dito que a vacina evitava, total ou largamente, a transmissão e a infecção. Eles fossem ceguinhos, embora no fundo apostassem na cegueira alheia. O descaramento é uma coisa extraordinária.
E o mais extraordinário é que o descaramento funciona. Na quinta-feira, dediquei o Ideias Feitas, na Rádio Observador, à confissão da senhora da Pfizer. E partilhei o programa no Twitter. Em minutos, dezenas de sujeitos irromperam a esclarecer-me que ninguém, Pfizer incluída, alguma vez dissera que a vacina impedia a transmissão. Mesmo não as conhecendo, vi que se tratava de criaturas sofisticadas na medida em que rematavam o esclarecimento com o epíteto de “chalupa”, dirigido à minha rudimentar pessoa. O que aconteceu depois teve piada. Dezenas de sujeitos diferentes, que também desconheço, encheram as “caixas” de comentários com vídeos e artigos de finais de 2020 e inícios de 2021, nos quais incontáveis protagonistas da novela “pandémica” garantiam que a vacina – vejam lá – impedia, sempre ou quase sempre, a transmissão.
O processo, mecânico e recorrente, merecia estudo académico. Num momento, o indivíduo X acusava-me de espalhar falsidades: “Ó sua besta, então a Pfizer disse que a vacina impedia a transmissão e a infecção? Chalupa!” No momento seguinte, o indivíduo Y publicava um filmezinho em que o CEO da companhia, o sr. Bourla (com “o”), prometia o êxito da vacina na prevenção da transmissão e da infecção. Imune às evidências, X retorquia a Y: “Não falo com terraplanistas. Chalupa!” Agora troquem o sr. Bourla pelo sr. Biden, o sr. Fauci, a responsável do CDC, o tiranete do Canadá, a doutora da DGS e cinco punhados de “autoridades” sortidas e ficam com uma ideia do que sucedeu no meu Twitter durante umas horas bem passadas: acusação e insulto; desmentido cabal; insulto e fuga. Ou tese furada, antítese e palermice, a dialética hegeliana ao alcance de caipiras. Caipiras rijos, dos que se lançam contra a parede às cabeçadas necessárias até a parede se render.
O problema aqui não é mera teimosia, a incapacidade de reconhecer um erro e mudar de opinião em conformidade. O problema, constante desde o início da Covid, não é a tendência para personagens simples adquirirem um certificado instantâneo de erudição através da desvalorização de terceiros, naturalmente reduzidos a “trogloditas”, “terraplanistas” e, claro, “chalupas”. O que impressiona é o fervor dos simples na defesa da exacta prepotência que os oprimiu a eles tanto quanto aos demais. Genuína e fervorosamente, desprezaram a liberdade, perseguiram incréus, abençoaram sacrifícios e entregaram-se a dogmas, que pelos vistos não largam. Para muitos, a Covid não é uma doença, e sim um culto que deu sentido a vidas que careciam dele. Esses devotos não têm medo: têm fé. E têm saudade.
E têm graça em invocar a “ciência”. Se a ciência dependesse de tamanhos adversários da dúvida, da crítica e da realidade, nenhuma vacina a salvaria de uma morte terrível.