Um acórdão do Tribunal Constitucional (TC), de 24 de Junho e agora revelado, considerou os confinamentos a pretexto da Covid uma “forma de privação da liberdade total”, dado implicar a “reclusão no domicílio” e ser portanto comparável à “prisão preventiva” ou “reclusão penitenciária”. Em suma, os três juízes do TC que assinaram o acórdão acreditam que os confinamentos são formal e materialmente inconstitucionais. Em Fevereiro, houve um acórdão idêntico.

Em ambos os casos, a notícia não abriu telejornais, aqueles simulacros informativos que durante dois anos se limitaram a transmitir, e a legitimar, os abusos cometidos pelo governo. É natural que, por se terem empenhado no objectivo oposto, os noticiários televisivos não estejam interessados em difundir um raríssimo momento capaz de nos recordar a existência de um Estado de direito e, o que é ainda mais importante, de um mundo vagamente civilizado. É uma memória ténue, após a descida aos abismos dos últimos anos. Para os optimistas, talvez seja uma esperança face aos abismos em que nos querem enfiar nos anos que aí vêm.

Segundo constitucionalistas ouvidos pelo Observador, o acórdão compromete o advento da “lei de emergência sanitária”. A dita lei resulta da reflexão de um grupo de sumidades, evidentemente escolhidas pelo dr. Costa, e permitiria que o conselho de ministros, evidentemente presidido pelo dr. Costa, decretasse sem maçadas jurídicas a detenção sumária de qualquer cidadão que violasse as regras necessárias ao bem comum, evidentemente definidas pelo dr. Costa. A ideia é que o poder político, evidentemente o dr. Costa, possa exercer o autoritarismo de modo legal com a mesma despreocupação com que o tem exercido de modo ilegal. A ideia é oficializar a ditadura.

É possível argumentar que seria uma ditadura suave, mas não por virtude dos senhores que mandam, e sim pelos defeitos dos senhores que obedecem. Há 15 dias, num evento público, o presidente do TC desenvolveu um pouco a triste história das prisões preventivas, perdão, dos confinamentos e da placidez com que foram acatados. Desconfio que a intervenção também não abriu telejornais.

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Disse João Pedro Caupers (e vale a pena ser generoso nas citações, colhidas neste jornal): “Se me perguntassem qual a principal lição que os anos de 2020 e 2021 me trouxeram, eu responderia: afinal, a garantia e proteção dos direitos fundamentais, que eu tinha por certa e, tanto quanto possível, eficiente, é bem menos segura e garantida”.

Depois acrescentou: “A anormalidade tornou-se uma nova normalidade. Entraram nas nossas rotinas coisas antes impensáveis como confinamentos forçados, proibição de deslocações, reconduções ao domicílio por agentes policiais, internamentos compulsivos, encerramento de escolas, serviços públicos e estabelecimentos comerciais”.

Quando o questionaram sobre a aceitação da prepotência, João Pedro Caupers, que refere a “situação comatosa” do Estado de direito, recusou as divertidas hipóteses da “consciência cívica apurada” ou da “resiliência e espírito de sacrifício”: “A minha explicação é bem mais simples: medo. Puro e simples medo”. Na opinião dele, “A principal luta do Tribunal Constitucional foi precisamente contra o medo, que o medo transformasse cidadãos livres em súbditos de um novo poder, o poder do vírus”. Terminou a temer que ao medo da epidemia se possam seguir outros medos e outras supressões da liberdade. Eu termino aqui as citações.

Alguns terão vontade de discutir a demora do TC em assumir estas posições, ou a eventual timidez que deixou implícita desde 2020. É uma opção justificada. Por mim, julgo preferível notar a extraordinária relevância das posições, e o extraordinário desprezo que o regime lhes dedicou. Num lugar menos folclórico, sobretudo as afirmações do presidente do TC suscitariam um abalo social se calhar irreversível, e uma crise institucional de certeza consequente. Aqui, na vasta maioria dos “media”, a coisa não chegou ao rodapé noticioso. Que eu reparasse, a totalidade dos partidos não lhe dedicou um pio. E a população nem soube da respectiva ocorrência. Se soubesse, suspeito que a teria achado impertinente.

Eis o facto: a quarta figura da hierarquia nacional compara o país recente a uma distopia sinistra e não acontece nada (há semanas, uma decisão do Supremo americano provou, por cá, comoção setenta mil vezes superior). É por isso que o realismo não aconselha a despejar esperança nos alertas do TC. Se em teoria é bom haver quem denuncie a deriva anti-democrática, na prática é péssimo o silêncio que as denúncias provocaram. O silêncio é a prova de que, de alguma forma, a Constituição, e os seus zeladores, já deixaram de contar. E a prova de que, tardio ou oportuno, João Pedro Caupers tem razão.

Não foram precisos os incêndios da praxe, e novas exibições de arbitrariedade, para que Portugal – e não só Portugal – entrasse na escuridão. E meia dúzia de luzinhas não chegam para contrariá-la: chegam para mostrar que a escuridão é imensa.