Não estávamos, de todo, preparados para conseguir, antes do dia 24 de Fevereiro, imaginar, sequer remotamente, que a cadeia de eventos que se lhe seguiu iria efectivamente seguir-se. Ninguém acreditava verdadeiramente que a Rússia fosse fazer marchar tropas Ucrânia adentro, bombardear cidades e massacrar civis.

Porém, aqui estamos nós, com mais de três meses de guerra na Europa, guerra essa como desde 1945 não se via no Velho Continente, uma pura e ortodoxa guerra de conquista levada a cabo contra todos os preceitos e normas do direito internacional, que gerou um inevitável e absolutamente necessário sentimento de injustiça no mundo livre das democracias ocidentais que, moralmente, se colocaram ao lado do agredido, providenciando a devida ajuda humanitária e, inevitavelmente, bélica.

Apoio bélico esse, absolutamente necessário para o esforço de guerra de um povo com toda a legitimidade e direito de resistir face à agressão brutal de que é vítima. Todavia, todos sabemos que esta guerra um dia terminará, ou baixará significativamente de intensidade, dia esse em que a Europa terá de, provavelmente, vir a lidar com uma nova ameaça, a circulação descontrolada dos despojos bélicos despejados sobre a Ucrânia que possam ir parar às mãos de grupos organizados de extrema direita, que sabemos que existem, tanto do lado ucraniano como do lado russo, grupos esses que têm laços de fraternidade com grupos semelhantes nos países da Europa ocidental, que se encontram desarmados.

Esta circunstância incorre no perigo de podermos voltar a ter de enfrentar, na Europa, uma nova onda de terrorismo ideológico-partidário, à imagem dos movimentos terroristas de esquerda marxista dos anos 70, 80 e 90, como a Action Directe, o GRAPO, a RAF, as Brigadas Vermelhas ou as FP25. Porém, no panorama actual, estaremos a falar de terrorismo ideológico-partidário desses mesmos referidos movimentos de extrema direita organizados que pululam pela Europa fora e que, através das suas relações de fraternidade para com os movimentos de extrema direita russos e ucranianos poderão, porventura, ter acesso a esse armamento para levar a cabo actos de terrorismo em plena Europa ocidental, com puras motivações políticas e insurrecionistas, tal como o terrorismo de extrema esquerda na segunda metade do século XX.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nestes grupos localizados denota-se também uma crescente onda de “Aceleracionismo”, uma corrente ideológica de extrema direita violenta, fenómeno brilhantemente exposto por Ricardo Cabral Fernandes no jornal “Setenta e Quatro”, que classifica o aceleracionismo como “uma corrente baseada no pressuposto de que a degenerescência (racial, cultural, económica, política e social) das sociedades ocidentais é incorrigível e, como tal, o seu colapso deve ser apressado por intermédio do caos e da tensão”.

Os aceleracionaistas acreditam que o colapso das sociedades resultará numa guerra racial ou numa catástrofe de tal magnitude que será possível construir uma nova sociedade racialmente pura a partir dos escombros da antiga. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021, é de notar nas entrelinhas que uma célula aceleracionista possa já estar estabelecida em Portugal.

Este tipo de movimentos alimentar-se-ão dos terríveis efeitos da crise económica pós-pandemia, que se agravarão com os efeitos da guerra e da imparável subida da inflação e dos juros, que motivarão, inevitavelmente, vigorosas ondas de indignação e protestos um pouco por toda a Europa, deixando os eleitorados perigosamente vulneráveis aos diversos tipos de populismos.

Todavia, será possível que nos deparemos com outro factor ainda mais preocupante, a insidiosa táctica de guerra de Putin, que visa deliberadamente condenar grande parte do mundo sub-desenvolvido à fome abjecta.

É já um dado adquirido que a Rússia tem em marcha um plano para fazer deflagrar a fome no sentido de chantagear o bloco ocidental. Putin, como aponta Timothy Snyder, académico da Universidade de Yale, está a preparar-se para matar à fome grande parte do mundo sub-desenvolvido como instrumento de chantagem.

Em tempos normais, a Ucrânia é um dos líderes mundiais na exportação de produtos alimentares, e o bloqueio naval russo está, neste momento, a impedir que a Ucrânia exporte alimentos para os seus mercados habituais. Caso este bloqueio continue, dezenas de milhares de toneladas de alimentos apodrecerão em silos e dezenas de milhares de pessoas em África e na Ásia morrerão de fome.

As consequências deste plano sórdido de Putin antecipam-se tão devastadoras e mortais que nos é difícil, neste momento, termos uma completa noção dos seus reais impactos. Temos também a tendência para nos esquecer do quão central e importante é a alimentação na política, o que pode ser facilmente comprovado por vários momentos históricos.

A ideia de que , controlar a indústria alimentar ucraniana pode alterar a ordem mundial não é nova, tanto Hitler como Estaline sabiam isso.

Para Estaline, as férteis terras ucranianas destinavam-se a ser massivamente exploradas com vista à construção da economia industrial da URSS, colectivização essa que, eventualmente, veio a matar de fome cerca de 4 milhões de ucranianos, situação na qual Estaline, sacudindo a água do capote, responsabilizou o próprio povo ucraniano, levando a máquina de propaganda soviética a apelidar de “nazis” aos que levantavam o véu daquele desastre humanitário.

Hitler, por sua vez, tinha planos semelhantes para a Ucrânia. Pretendia a conquista total do território ucraniano como objectivo principal da guerra na frente de leste, tendo em vista desviar os cereais ucranianos para a Alemanha na tentativa de matar à fome milhões de cidadãos soviéticos.

A 2ª Guerra Mundial a leste foi disputada na Ucrânia pelo controlo da mesma por parte de dois ditadores que desejavam controlar as cadeias de circulação e fornecimento alimentar.

A máquina de propaganda russa preparou com muitos anos de antecipação o seu “plano de fome”, dizendo repetidamente ao povo russo que a fome causada por Estaline foi um acidente e que os ucranianos são nazis, o que, aos olhos da massa populacional russa, legitima e torna aceitável o roubo de bens alimentares e o bloqueio marítimo.

Acredita-se, segundo Snyder, que este plano de fome se subdivida em três níveis.

O primeiro foca-se na tentativa de destruir o Estado ucraniano, não apenas físicamente, mas economicamente, estrangulando as suas exportações e os seus meios de produção.

O segundo foca-se em gerar um fluxo colossal de refugiados das regiões do norte de África e do médio oriente, áreas que importam quantidades massivas de bens alimentares provenientes da Ucrânia, o que geraria uma onda de instabilidade por toda a Europa, com o aumento brutal de afogamentos no Mediterrâneo, botes a dar à costa nas praias do sul da Europa e crises humanitárias sem precedentes em Ceuta e Calais, entupidas de refugiados que fogem da situação de fome.

O terceiro nível, e o mais horrendo de todos, prende-se com a necessidade premente que a propaganda russa tem de gerar uma crise de fome global para colocar as várias opiniões públicas dos países afectados do lado russo, apontando o dedo à Ucrânia, movendo contra esta uma campanha propagandística de ódio e atribuição de culpas.

Quando os motins começarem a fazer-se sentir nas ruas dos países do norte de África e do Médio Oriente motivados pela fome, os veículos de propaganda pró-russa prontamente se apressarão a colocar a Ucrânia nos cornos do touro, tentando forçar uma aceitação substancial da sua ocupação militar e dos seus respectivos ganhos territoriais, conquistados pela via da força, bem como o levantamento das sanções impostas pelo Ocidente.

Em suma, a Rússia está a planear matar à fome centenas de milhares de africanos e asiáticos de modo a vencer a guerra que está a levar a cabo, política, económica e militarmente.

O caos que pode vir a surgir deste conjunto de circunstâncias será o ecossistema perfeito para que diversos movimentos insurrecionistas de extrema direita possam operar livremente por entre os pingos da chuva e montar aparatos clandestinos de apoio à luta armada e não armada contra as forças democráticas e os seus respectivos regimes, enquanto que os vários partidos desse mesmo campo darão o seu devido contributo nos respectivos parlamentos, enleando a opinião pública em torno de temas difíceis para os quais apresentam soluções simplistas e populistas, fazendo esta deslizar no sentido de voto destes respectivos partidos com potenciais laços de fraternidade com células radicais, ou, até mesmo, contaminados por elas.

Num cenário de colapso económico, decréscimo do poder de compra, crise mundial de fome e consequente aumento do fluxo de refugiados, a Europa estará, como nunca esteve desde os anos 30, numa posição de vulnerabilidade elevada face à “deriva autoritária”, deriva essa que disporá, não só de um imenso capital político com todas as circunstâncias trazidas pelos tempos de guerra e de crise, mas também numa posição de vulnerabilidade face a uma muito possível proliferação de armamento de guerra descontrolado pelas células radicais de extrema direita, e com todas as consequências que dessa circunstância possam advir.

24 de Fevereiro de 2022 virou para sempre o tabuleiro e trocou várias peças de sítio. Esperar-nos-á um novo tempo, novas vidas e uma nova ordem socio-politico-económica mundial, à qual a nossa política externa terá forçosamente que se adaptar permanentemente.