Qualquer altura é boa para se reflectir sobre a espantosa facilidade de acreditar que habita os bons humanos, que podem, de resto, ser péssimos. Basta abrir um jornal ou ver televisão e constatar a quantidade de coisas que num dia fazem bem à saúde e no dia seguinte fazem mal, para voltarem a fazer bem dois dias depois. E as pessoas acreditam sucessivamente em coisas diferentes. São crenças relativas: ninguém, em princípio, investe grande passionalidade nelas. Note-se que, por mais extravagante que tanta credulidade nos possa parecer, ela é de facto necessária, numa certa dose, para que as sociedades sobrevivam. Uma sociedade de puros cépticos não poderia nunca existir.
A questão é diferente com as crenças absolutas. Aí o investimento passional – o desejo – é total. Na vida privada (no amor, por exemplo), as consequências vão do melhor ao péssimo, passando pelos vários estádios do ridículo. Há quem viva a vida quase toda assim, e quem nunca passou por essas aventurosas experiências deve ser alguém bem estranho. De qualquer maneira, o mal, o bem e o ridículo são nossos e de mais ninguém. Com as crenças absolutas em matéria política, a coisa é diferente: afectam, ou podem afectar, a totalidade da sociedade. E, em certos casos, essas crenças absolutas ditadas pelo desejo constituem uma patologia bem determinada.
Um dos pontos dessa patologia reside no facto de as crenças absolutas negarem, por princípio, a realidade. E isso por uma razão simples: por a realidade ser insusceptível de uma determinação absoluta a partir da crença. Banalmente, a realidade social escapa, por definição, ao absoluto da crença. Não pode haver coincidência total entre uma e outra. E a crença absoluta exige tal coincidência, De outro modo, não seria absoluta. Seria uma crença política não-patológica, que aceitaria os obstáculos do real e procuraria lidar com eles. Ou, se se quiser, uma crença que aceitaria as muitas mediações necessárias para que o desejo, o desejo político, seja pelo menos parcialmente satisfeito.
O momento seguinte da patologia das crenças políticas absolutas, resultante do atrito da crença política absoluta com o real, é a passagem para um mundo imaginário. É, somando tudo, um reflexo compreensível. Se a realidade resiste, busca-se aquilo que não oferece resistência, e o doce e suave mundo imaginário sem dúvida que não oferece resistência, até porque é moldado por inteiro pela crença política absoluta. O problema é que a coisa, chegada a este ponto, começa velozmente a aproximar-se do mundo da loucura. E, vista de fora, a crença política absoluta passa a apresentar vários dos sinais mais indisfarçáveis do ridículo. De um ridículo ligeiramente inquietante, primeiro, e, depois, de um ridículo francamente ameaçador, porque cria uma corrupção de todos os elementos que estruturam o elo social.
Mas – terceiro momento da patologia das crenças políticas absolutas – não é possível viver completamente imune ao atrito da realidade, mesmo num mundo imaginário. Tal como um mitómano tem de reconstruir permanentemente o seu passado na intenção de oferecer alguma verosimilhança, para o exterior, da sua existência inventada, as crenças políticas absolutas precisam, por mais unas e petrificadas que sejam, de se reorganizarem perpetuamente. É fundamental para que continuem a viver e possam ainda ser partilhadas pelo maior número. O elemento dessa reorganização é a mentira. Primeiro, a mentira pura e simples: dizer o que não se pensa, negar que se disse aquilo que se disse ou explorar, até aos mais extremos limites da elasticidade das palavras, os sentidos daquilo que se disse. Em segundo lugar, a mentira interior: injectarmos em nós mesmos a convicção de que a mentira é a verdade. Algo que qualquer um de nós faz uma vez ou outra, mas que no caso da vida imaginária das crenças políticas absolutas atinge proporções épicas.
Por fim, momento último da patologia das crenças políticas absolutas, já que nem este último recurso, a pura e simples mentira ou a mentira interior, permite completamente evacuar a realidade, passa-se a algo como uma tentativa de a destruir. É o momento niilista das crenças políticas absolutas. O apetite da violência e a vontade de destruição, desejos latentes desde o princípio, ganham todo o espaço possível. Qualquer fragmento de vaga racionalidade, qualquer sugestão de responsabilidade, se perdem assim. A alegria com o irracional anda de mãos dadas com a decisão de tudo abolir. Se a coincidência inicialmente almejada da crença absoluta com a sociedade se revela sem apelo impossível, resta a última solução: acabar com a sociedade ou reduzi-la a farrapos.
Este último momento vê-se aqui e ali na história, e pode muitas vezes ser suspeitado logo desde os primeiros passos das crenças políticas absolutas. Quando elas aparecem vestidas com as lindas cores das radicais redenções, há muitas probabilidades de acabarem com os negros tons das ruínas. Se a nossa proverbial facilidade de acreditar deseja conhecer os seus extremos, o melhor é limitar o seu exercício às matérias privadas. Afinal de contas, até pode correr bem. Se correr mal, o problema é nosso. E, a meio caminho, o ridículo na paixão tem, paradoxalmente, uma dignidade própria.