Recentemente, pus o meu nome num abaixo-assinado, uma coisa que, por várias razões que não interessa explicar, fiz pouquíssimas vezes na vida. O abaixo-assinado pede a libertação de um professor venezuelano de filosofia, Jorge Machado, que se encontra desde 19 de Maio preso pelo “Servicio Bolivariano de Inteligencia”, acusado de rebelião e traição à pátria. O amigo que me enviou o papel conhece-o bem, tendo estado com ele em vários colóquios sobre Leibniz, autor de que ambos são especialistas. Mais um preso do regime que, desde o início das diárias manifestações contra Maduro, fez pelo menos já 69 mortos.
No outro dia vi Maduro na televisão. Numa espécie de caricatura de certos personagens das aventuras latino-americanas de Tintim, gritava vezes sem conta: “Saca tus manos de Venezuela, Donald Trump” (pronunciar: Truuum). As ditaduras precisam, como se sabe, de inventar inimigos externos e Trump, ou Obama, dão sempre jeito. Além disso, o ridículo não incomoda, mesmo quando toma a figura do grotesco. O problema é que o grotesco é muitas vezes a antecâmara do horror.
Mas estas coisas não parecem incomodar muita gente. Mesmo que os detalhes todos concretos se encontrem à disposição de quem os queira conhecer, como, por exemplo, no excelente artigo de João Almeida Dias publicado aqui no Observador, “Quem são os «colectivos» que defendem o regime de Maduro com armas?”. Nunca incomodaram. Os regimes ditatoriais que se apresentam como “de esquerda” têm uma longa tradição de compreensões e afectos. O nosso PC, campeão desta disciplina, prolonga, de resto, a sua insigne história no que repeita à Venezuela. Mas a coisa vai muito além do PC, desgraçadamente.
A culpa é sem dúvida da oposição a Maduro. Representasse ela uma Ideia (com maiúscula) de uma sociedade nova, a promessa de uma “sociedade-outra”, como se diz, e ninguém conseguiria calar, por exemplo, o Prof. Boaventura Sousa Santos, cuja lista de indignações, e de explicações delas, é imensa e conhecida. O problema dos venezuelanos é terem pouco para oferecer no capítulo. Não dão que sonhar. Vejam do que é que eles precisam e reivindicam: os mais banais medicamentos, os mais triviais alimentos, e até, imaginem, papel higiénico. Querem pôr-nos a sonhar com isto, os rústicos? Que falta de imaginação! Ah, falam também de liberdade, é verdade. Mas que liberdade tão pouco heróica, tão pouco Patria o muerte! Quem quer uma liberdade tão prosaica precisa obviamente de uma ditadura que lhe ensine a desejar uma liberdade maior e mais verdadeira. Uma liberdade com uma Ideia. Falem com o passarinho e talvez nos seduzam.
Entretanto, merecem é desprezo. Isso a gente tem em abundância. O desprezo por aquilo que é comum, pelos medos triviais, pelos desejos elementares, pelos sofrimentos passivos do dia-a-dia, por tudo aquilo que é vivido sem promessa de um Bem político maior e que até pode contra ele militar. Lenine, como de costume, educou-nos no capítulo, como muito bem sabem os camaradinhas do PC. Em 1891 e 1892, na região do Volga, uma horrível fome matou, segundo estimativas verosímeis, 400.000 súbditos de Alexandre III. A desgraça perturbou muita gente, como Tolstoi, que fez tudo para a minorar. Uma pessoa não se perturbou absolutamente nada: Lenine, é claro. A fome era, na cabeça de Vladimir Ulyanov, o produto da industrialização capitalista. E, na altura, de acordo com a ciência marxista (haveria depois de sustentar o contrário), quanto mais depressa chegasse o capitalismo à Rússia, mais rápido viria, a seguir, o socialismo. Os mortos eram mortos necessários. A escola dos cadáveres, para roubar um título célebre de outras bandas, veio para ficar.
E ficou, como ficou o desprezo pelo comum. Gerações e gerações de intelectuais comunistas de orientação variada ensinaram-nos que o advento do Grande Acontecimento, a Revolução, não se compadecia com a comezinha piedade burguesa. O desprezo por tudo o que não transporta uma Ideia de futuro tornou-se uma segunda natureza. Os indivíduos são acidentes da história, contingências, pura espuma de superfície. Os venezuelanos mortos, os venezuelanos presos, não significam nada. Que Ideia reflectem eles, que necessidade revelam?
Esta maneira de ver as coisas é, sob roupagens mais pacatas, muito mais difundida do que pode parecer. Ela subjaz a muitas das análises que se vão fazendo do que se passa neste nosso confuso mundo. O desprezo pelo comum é para muitos o fio condutor que determina a escolha de causas. Inclusive aquelas que se pretendem uma defesa das minorias, ou, para falar a linguagem dos tempos, do outro. A aparência da abertura de espírito pode bem ser sinal de um seu particular fechamento. A defesa do outro, transformada em guia da vida política, é muitas vezes uma questão de distinção, um modo de não nos confundirmos com os outros mais comuns, de evitar pormo-nos no lugar deles. Os outros são insignificantes, só o outro é significativo. E que merece o insignificante senão desprezo? Efectivamente, desprezo é o que mais há por aí.