Num dia, a guerra surpreende-nos. Noutro, um massacre numa escola dos Estados Unidos deixa-nos em choque. Fará a violência parte de nós? Como é que pessoas que se vinculam e se amam são capazes da violência e da morte ? Se todos os animais, sempre que se sentem ameaçados e acossados, são agressivos, porque é que só os seres humanos são violentos?

Em muitos momentos, o discurso dos pais e dos educadores é pouco compreensivo para com a agressividade dos filhos. De início, as mães chamam à ira dos bebés “raivinhas”. Acolhem-na. E, de certo modo, mimam-na. Mais tarde, censuram-na e reprimem-na. Regra geral, os pais entendem a agressividade como um coisa má. Reagem como se ela parecesse ser a antecâmara da violência. Mas a agressividade humana é, simultaneamente, um ansiolítico e um anti-depressivo. Sempre que nos assustamos, eriçamo-nos e reagimos. Na base, a agressividade é saudável. A ira (a raiva) é reflexa. Surge quando surge o stress.  Mesmo que, a seguir, se transforme num impulso. A ira mete medo ao medo. Assusta quem nos assusta. A agressividade é um degrau acima da ira, a caminho do pensamento. Já tem muito de voluntário. Protege do medo, num primeiro momento. Sublimada, transforma-se em rivalidade e ambição. Transformada, promove a proactividade e o empreendedorismo. A agressividade que não se comunica não se transforma. Sempre que a contemos, a agressividade que resulta da dor gera a hostilidade (inibindo a sensibilidade, a imaginação, a fantasia, a subjetividade e a relação). Conter a hostilidade torna-nos amigos do rancor. E rancor é ódio. E o ódio o motor da violência. Contida.

É claro que a agressividade magoa o outro. E é suposto que em consequência dessa dor sejamos capazes de aceder à experiência de culpabilidade. Sem experimentarmos a culpabilidade não nos tornamos bondosos. Magoarmos o outro rouba-nos aquilo que ele nos pode dar de si, que seja indispensável ao conhecimento de nós próprios e ao nosso crescimento. Aquilo que distingue a agressividade da violência é que a agressividade termina onde começa a consciência da dor do outro. Já a violência começa aí. Violência são todos os actos voluntários que promovem, deliberadamente, sofrimento no outro, sem que mereçam reparação, esperando quem nos violenta que essa violência desencadeie em quem foi agredido uma reacção especular. Quem violenta precisa que quem é violentado ou reaja em pânico, e pactue com o mal, e faça com que a violência se repita, ou reaja em espelho, respondendo com violência, justificando mais maldade por quem começou por violentar.  As pessoas violentas esperam que a resposta dos outros seja à medida da violência que projectam sobre eles. É por isso que todos os violentos, a seguir a violentarem, reclamam que reagem em legítima defesa.

Ninguém nasce violento! A violência resulta de apelos cumulativos ao apego, permanentemente, insatisfeitos. A dor corrompe o amor pela violência. É por isso que na base da violência está o desespero, que resulta da dor, continuadamente lancinante, que alguém nos trouxe. E que leva a que quem sofre absorva a culpa pelo seu sofrimento. Como se a maneira como é violentado fosse, no limite, uma responsabilidade sua. Quase como quem violenta nos perguntasse, como quem se lamenta: “Porque é me obrigas a fazer-te mal?!…” Tal é o modo como quem violenta impinge a culpa da sua violência sobre a sua vítima, continuadamente.

A culpa pela dor que se sofre nunca se esquece. E persegue por dentro. É uma culpa que atormenta. E que enlouquece. Expulsá-la, “vomitando-a” sobre o outro, é uma forma de a tentar exorcizar. Destruí-lo, um modo de a incinerar, para que desapareça. E é por isso que o ódio é a lixívia da culpa. E, enquanto funciona, sustém a loucura. Mas o ódio não destrói a culpa, completamente. Até porque ela gera uma inveja destrutiva diante de todos os outros que têm o privilégio de ter aquilo que quem violenta nunca teve. Conspurcar e contaminar o bem pelo mal serve para que o bem dos outros não avive e não acentue mais as falhas do bem que não se teve. E assim não exacerbe o desespero. Porque qualquer episódio de culpa sobre a culpa que persegue por dentro representa “a gota de água” que afoga. Vistos pelos olhos do mal, o diabo são os outros.

É por isso que qualquer pessoa enlouquecida vê a destruição do outro como uma forma de se libertar do mal que a persegue. Num registo de “ou mato ou morro”. Ou destruo tudo aquilo que me atormenta e amenizo o meu desespero, ou mais desespero sobre todo o desespero que já sinto me destrói. Por outras palavras, sim, quem violenta já foi violentado. Ou foi acumulando distrações sobre distracções de quem não as podia ter tido sobre todo o sofrimento de que se foi vítima. E, sim, tanta dor torna-o doente. Mas nem sempre a violência se manifesta pela destruição física de alguém. Muitas vezes, traduz-se por assassinatos de carácter. Noutras, por atentados à intimidade, à imagem ou à vida privada. Noutras, ainda, pela calúnia e pela difamação.  Noutras, finalmente, quando o mesmo discurso de ódio surge embrulhado numa ideia de purificação. Como quando uma minoria organizada defende a destruição de um dado grupo como uma forma supremacista de vincar no mal que promove o seu estatuto de defensor do bem. Pelos olhos dos maus, o diabo são os outros. Aos olhos das pessoas saudáveis, o diabo vive em nós. E é a forma como dialogamos com as nossas pequenas maldades que os remorsos abrem espaço para escolhermos o bem. Mas é fácil tornarmo-nos um bocadinho maus. Fazemo-lo, por exemplo, quando, diante do mal, reclamamos um estatuto de neutralidade. Que é uma forma — cobarde, todavia — de assumir que o mal que vitima os outros é… dos outros. Mesmo quanto mais o mal se banaliza mais a compaixão acabe em indiferença. Nessa altura, a vergonha resulta da forma como fugimos do mal de que os outros são vítimas. Representa uma forma de reconhecermos, silenciosamente, que o diabo também vive em nós.  Mas que o mal está nos outros.

Num dia, a guerra surpreende-nos. Noutro, um massacre numa escola dos Estados Unidos deixa-nos em choque. Fará a maldade, intrinsecamente, parte de nós? Sermos capazes de maldades não significa que sejamos maus. Mas, sim, todos somos capazes do mal. De pequenos males, pelo menos. Por mais que haja uma grande diferença entre sermos maus num impulso, magoarmos, reconsiderarmos, pedirmos que nos desculpem e reparamos as nossas maldades, e escolhermos ser maus.

Como é que pessoas que se vinculam e se amam são capazes da violência e da morte? Porque a violência de que se é vítima corrompe a esperança, corrói a confiança e martiriza o amor, o que faz com que a essa violência se oponha a violência com que se vitimiza. Sempre que de cada vez em que somos vítimas não nos refugiarmos em quem nos ama. O amor é o antídoto do ódio. Mesmo quando é a dor esdrúxula que se sofre que mais aclara quem nos ama.

Se todos os animais são agressivos, sempre que se sentem ameaçados e acossados, porque é que só os seres humanos são violentos? Porque só os seres humanos são capazes de pensar. Sobre o desespero. Sobre a culpa. Sobre a humilhação. E, para que não enlouqueçam quando pensam (e morram, a seguir), a violência é a forma de porem a inveja a vingar-se sobre os outros da culpa que resulta da violência que sofreram, na solidão e sem auxílio.

Seremos todos capazes do ódio? Olhando as redes sociais não há, muitas vezes, como dizer que não. O que faz com que, às vezes, vivamos num mundo que é contra a guerra e a favor do ódio. (Acrobático, não é?…) Mas, para além do ódio, o mundo das pessoas é, ciclicamente, amigo da vaidade. E a  vaidade, bem vistas as coisas, é uma forma de esconjurar a inveja. De fazer de conta que estamos acima dela. De usarmos os outros como objectos diante dos quais se exibe a nossa supremacia. Por outras palavras, temos muitos bocadinhos de violência, mais ou menos silenciosa, dentro de nós. A vaidade que se impõe é violência. Ódio é violência. Humilhação é violência. Indiferença é violência. E, já agora, reagirmos com pensamentos cheios de destrutividade, quando uma dor brutal nos atropela e dilacera, é violência. A diferença está entre reconhecermos o diabo em nós diante dos momentos em que somos violentos num impulso, e escolhermos ser bons, ou assumirmos que maus são os outros ou que são eles os únicos culpados do nosso desespero.

Chegados aqui não é justo que se presuma que aquilo que se disse seja uma forma de banalizar a violência. Ou de a desculpar. Ou de levar ao colapso a comporta com que separamos o bem do mal, com medo que um e outro se confundam. Dividir as  pessoas entre os bons e os maus não significava que os bons não possam, às vezes, ser maus. Aquilo que distingue os bons dos maus é que, para os bons, a sua maldade termina onde começa a consciência da dor do outro. Para os maus, a sua maldade começa aí.

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