Como seria de esperar, por ter escrito em cima de um processo eleitoral em curso, recebi diversos apontamentos à última crónica publicada nesta coluna, onde abordei alguns dos dilemas com que se confronta a IL, desde logo às críticas que lancei à “vaga” liberal que de alguma forma é responsável pela necessidade de clarificação de lideranças que João Cotrim de Figueiredo precisou de convocar, antes do fim do seu próprio mandato.
Muitas das reações acabaram por servir, apenas, para confirmar as minhas reservas à existência de um partido liberal. E, também, para explicar por que razões um partido como a IL, que recebeu um tão grande incentivo da parte do eleitorado há apenas uns meses atrás, se vê a braços com uma crise de liderança. Tenho em qualquer caso que dizer que todas as mensagens que recebi, não obstante acesas e algumas até bastante “intensas”, foram-me todas elas dirigidas com correção e sentido de urbanidade, algo que nem sempre ocorre nestes tempos digitais onde pululam os heróis de teclado que se agigantam atrás do ecrã, abusando de linguagem insultuosa e agressiva.
Boa parte das críticas que recebi, a nível particular, estão bem resumidas numa crónica de réplica difundida aqui no Observador, pela pena de Nélson Gonçalves. Num texto que apelidou de “feios, porcos e liberais”, Nélson Gonçalves – para lá das afirmações habituais de militantes em campanha – em nome de muitos liberais manifesta “sérias dúvidas de que o PSD ou o PS fossem lugares onde os liberais se sentissem em casa”, reforçando a sua convicção de que “a IL não ‘iliberalizou’ os partidos do arco do poder porque estes nunca foram liberais”. Pergunta, aliás, “[q]uais destes dois partidos, ao longo da sua história, seja no poder ou na oposição, lutou por instituições independentes do governo, pela redução do poder do Estado e pela primazia do indivíduo em decidir a sua vida? Nenhum dos dois”.
O Nélson Gonçalves – e por isso lhe agradeço –, conseguiu numa tentativa de réplica confirmar tudo aquilo que tenho vindo a alertar, desde logo a tribalização do liberalismo que a IL patrocina e, mais ainda, o acantonamento que as ideias liberais acabam paradoxalmente por sofrer, com a criação de um partido que se diz liberal.
Desde logo, a afirmação de que, até ao aparecimento da redentora IL, os liberais estiveram órfãos de quem defendesse as suas ideias, nos partidos até então existentes, é uma aberração que, só por si, mostra à saciedade a alienação da realidade em que vivem muitos dos que hoje acreditam na Vanguarda Liberal.
É de Francisco Lucas Pires a frase que rezava: “Ao princípio não era o Estado, mas o Homem. Era o Homem, o espírito e o barro. É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar, não o Homem quem tem de se estadualizar (…)”. Longe do individualismo que afasta liberais de anarquistas, escreveu, com mestria: “Um indivíduo sem povo é o princípio do privilégio e da ditadura; um povo sem indivíduo é o princípio da demagogia e do totalitarismo. O Homem é, pois, a unidade agindo como indivíduo e como povo simultaneamente. Não pode, então, falar-se de auto-determinação onde não exista um processo paralelo de co-determinação”. Lucas Pires fez parte do “Grupo de Ofir”, que aliás fundou, grupo que, como muito bem escreveu o Jorge Miguel Teixeira, veio reforçar, e cito, “o trabalho de pensamento alternativo ao socialismo, reafirmando o papel central da Europa, da democracia e da abertura económica no Portugal moderno”. Já antes dele, Francisco Sá-Carneiro, não obstante fosse um social-democrata, exibia um pendor reformista e liberal (até nas suas opções de vida pessoais) que sinalizava uma abertura importante num país onde as elites (ao contrário de um povo sempre com um pé na emigração) continuavam fechadas ao mundo.
Desde a ascensão de Sá Carneiro no PSD e da criação do Grupo de Ofir que não tem faltado na III República quem defenda em vários partidos soluções liberais para Portugal. O CDS, é verdade, viveu sempre dividido entre os que pretendiam fazer de Portugal um país mais liberal, e os que, tributários de uma democracia cristã mais próxima da doutrina social da Igreja, se foram deixando capturar pelo socialismo reinante. Tal não significa, porém, que no CDS não tenha havido, durante várias décadas, pessoas e militantes que nesse partido e na sociedade portuguesa defenderam e promoveram, por exemplo, a defesa da iniciativa privada, a liberdade de escolha na educação, ou a necessidade de reformar a Segurança Social. E se com Cavaco Silva o PSD mais liberal sofreu um grande revés, não é de ignorar que neste partido sempre houve espaço para a defesa de políticas mais reformistas.
Desde a Revolução de Abril que não foi incomum encontrar defensores de soluções liberais e reformistas da matriz socialista a que Portugal aderiu, no plano constitucional, em 1974. A reforma da saúde levada a cabo pelo Ministro Correia de Campos e mantida por PS, PSD e CDS até 2015 – infelizmente revertida pela Geringonça – é um bom exemplo de como as matrizes liberais, em diálogo e em ambiente de compromisso alargado, podem ser benéficas para o país. Não faltaram também no governo de Passos Coelho e Paulo Portas, entre 2011 e 2015, políticos e políticas de inspiração liberal, de grande impacto e extensão. Desde logo, as que Adolfo Mesquita Nunes levou a cabo no Turismo, na Lei do Jogo, ou a reforma da lei das rendas de Assunção Cristas. Mas não apenas. Eu próprio tenho orgulho de ter participado num processo estruturado de liberalização do setor da defesa, com a privatização de empresas que, estando falidas e outras até viáveis – como a EDISOFT, a EID ou os Estaleiros Navais de Viana do Castelo –, apresentam hoje uma solidez que ultrapassa as melhores expectativas projetadas à época. Só as poupanças para o erário público levadas a cabo por José Pedro Aguiar-Branco e a sua equipa superam em muito os mil milhões de euros, sem que isso tenha prejudicado – antes pelo contrário – a solidez das Forças Armadas. Num almoço recente, informal, confidenciava-me o próprio Aguiar-Branco que sempre sentiu mais apelo, como pessoa com simpatias liberais e reformistas, em trabalhar num partido mais plural, em diálogo com a social-democracia e um pensamento mais conservador, já que isso lhe permitiu fazer parte de um partido representativo de um Portugal plural onde pôde executar várias reformas, olhando com tristeza para o afastamento que existiu, no seu PPD/PSD, de uma certa matriz liberal.
E se, ao contrário do que muitos militantes e simpatizantes da IL acreditam, já havia em Portugal liberalismo e liberais, a própria IL, em muitos aspetos, está longe de poder ser considerada – perdoem-me a blasfémia – um depositário fiel do que é ser “liberal”. Quem tenha uma formação ideológica minimamente sólida, no plano liberal, não pode, por exemplo, deixar de corar de vergonha ao ler o Programa Eleitoral com que a IL se apresentou nas passadas eleições legislativas, onde, entre dislexias e copy-pastes, se assassinam em várias propostas os fundamentos básicos de todos os liberalismos que, no seu pluralismo, fui conhecendo ao longo dos anos, e onde não cabem o deslumbramento fabiano pela tecnologia, a concentração de bases de dados, ou violação da separação de poderes na administração da Justiça. Sobre este tema em concreto escreverei com mais detalhe numa próxima crónica. Vários dirigentes da IL a quem confidenciei isto há uns meses – como era possível apresentarem centenas de páginas de tamanha aberração? – diminuíram as minhas apreciações, justificando-se com a importância de “envolver todos sem os contrariar”, e do triste facto de que “no final, ninguém lê os programas eleitorais, nem mesmo os candidatos”. Estou certo de que, à data de hoje, muitos dos que me minimizaram as críticas estarão arrependidos por terem deixado que um programa eleitoral fosse um momento cacofónico de “empoderamento”, abrindo espaço à babelização atual que se vive no partido. Em qualquer caso, e para registo, recomendo ao Nélson Gonçalves, e a todos os que na IL querem promover as ideias liberais, que rasguem o seu próprio programa, e leiam com atenção o trabalho sério levado a cabo pelo CDS em 2019, um bom programa eleitoral, sólido no plano liberal, realista e aplicável na prática, não tivesse a marca de liderança do Adolfo Mesquita Nunes – um insuspeito liberal – com contributos de várias pessoas com experiência política e conhecedores da realidade do país (vários deles, pasme-se, que se consideram liberais).
Termino esta crónica agradecendo penhoradamente ao Nélson Gonçalves e a todos os que, como ele, me dirigiram críticas semelhantes, por me darem, com a suas próprias palavras, razão de ser às minhas. Tenho a dizer que foi com carinho – mas não nego, também com alguma comiseração – que li as tentativas panfletárias de colar as minhas ideias ao Estado Novo e até à eleição do secretário-geral do PCP. Querer acreditar que antes da IL não havia liberalismo em Portugal é ingénuo. Já achar que a presente eleição na IL é o expoente, uma manifestação saudável de democraticidade interna, é de uma cegueira que confirma à saciedade o que tenho vindo a escrever sobre o partido. Espero, como escrevi há duas semanas, que haja capacidade na IL para reverter a balbúrdia reinante. Mas não evitemos dizer o que é evidente: a coisa não está bonita.