Agora que o Eduardo Jorge foi resgatado da rua pelo (a)braço de Marcelo Rebelo de Sousa, que antes de ser Presidente da República, já era um homem que teria que nascer outra vez para conseguir dormir descansado sabendo que um tetraplégico estava ao relento na rua, dia e noite, a lutar por direitos fundamentais para ele e para outros como ele, dizia eu que agora que o pior já passou todos podemos dormir também um pouco mais descansados. Confesso que me foi difícil conciliar o sono na primeira noite, pois a única imagem que tinha era a daquele homem cheio de dignidade e de razões, deitado numa cama entre grades, no meio da rua, exposto ao frio dos dias e ao gelo das noites.
Estive lá com ele, mas também conversamos por telefone nas vésperas e quando ia a caminho. Voltamos a falar depois, quando regressou ao lar onde mora. Percebo-o e respeito-o em toda a linha. Fiquei contente por saber que houve argumentos sérios que o demoveram no momento em que o PR e a Secretária de Estado da Inclusão foram ter com ele. Esperemos agora para ver os resultados práticos desta ação, que tinha como objetivo chamar a atenção para a situação em que se encontram muitos deficientes e tetraplégicos, que não só têm que lidar com a fragilidade da sua condição e com a frustração decorrente de incontáveis barreiras e obstáculos que encontram no quotidiano, como muitos ainda são obrigados a morar em lares de idosos, onde partilham a vida com pessoas muito velhas e muito dementes. Lares de onde não podem sair por não terem como pagar a um assistente pessoal para os ajudar nas tarefas básicas e os levar à rua quando precisam.
Acredito que a seriedade com que o PR e a secretária de Estado da Inclusão se dirigiram à ‘gaiola’ onde Eduardo Jorge esteve deitado durante 24h (alimentado única e exclusivamente a água e tapado com dois edredons), para conversarem com ele e lhe darem não apenas uma palavra de conforto, mas também palavras de esperança e de compromisso no sentido de influenciarem novas decisões, vai colher bons frutos no futuro próximo. Mesmo que seja necessário um certo tempo para rever a lei, para a reescrever ou fazer uma adenda, não será tempo perdido nem poderemos falar de recuos ou prejuízos para ninguém. Tudo será ganho se daqui em diante todos, absolutamente todos, percebermos que o Eduardo poderia ser cada um de nós ou algum dos nossos filhos. Qualquer um de nós pode ficar tetraplégico hoje mesmo! E nenhum de nós quer ser obrigado a lidar com essa realidade e, ao mesmo tempo, ser forçado a sair de casa para ir morar num lar de idosos.
Tenho uma consciência muito real da facilidade com que a vida muda por estar muito próxima de amigos que ficaram em cadeira de rodas. Um por acidente de mota, outra por ter caído de um segundo andar quando estava a tirar roupa que estava estendida na corda, outro na sequência de uma queda de cavalo, outro ainda por ter feito uma carreirinha no mar, mais outro que se despistou na estrada, uma que foi atropelada numa passadeira de peões (!) e ainda outra por ter entrado às arrecuas num elevador por estar a carregar caixas (como voluntária, para ajudar uma causa!) sem se aperceber que as portas se abriram sem o elevador estar lá. Caiu no fosso do elevador e ficou paraplégica. Revejo-me em todas as situações porque qualquer uma podia ter acontecido comigo. Ou com algum dos meus.
E por ter uma consciência aguda de que num instante a vida muda mesmo (por vezes radical e irreversivelmente para muito pior!), hoje aproveito a boleia do protesto do Eduardo Jorge para protestar também eu contra duas atitudes que considero levianas por poderem gerar acidentes tão graves como os que ele sofreu. Falo da loucura que é agora termos trotinetes elétricas a circularem no meio da estrada, no trânsito caótico da cidade, mas também falo da sempiterna tendência para escrever mensagens ao telemóvel a conduzir.
Primeiro as trotinetes: quem é que nesta cidade controla esta gente? Quem são as autoridades que multam e apitam a torto e a direito, mas se abstêm de mandar parar uma trotinete que atrapalha colossalmente o trânsito de uma avenida central, à hora de ponta, obrigando carros e autocarros a parar ou a abrandar porque uma excelsa e ufana pessoa vai infantilmente empoleirada na sua trotinete sem sequer usar capacete? E, já agora, quem é que na Emel se desperdiça a controlar tudo e todos, até à náusea, mas deixa de fora esta casta de veículos de diversão, de duas pequeníssimas e frágeis rodas rentes ao chão, uma à frente e outra atrás, sem proteção nenhuma nem capacidade de acelerar em situação de ultrapassagem, que ainda por cima estacionam onde querem, chegando a ocupar lugares reservados a carros de moradores?
Este inferno começou há pouco tempo, eu sei, mas é inacreditável que se deixem circular brinquedos nas estradas. Ideais para passeios e passeatas, não tenho nada contra o seu uso, desde que limitado a percursos fora de estrada. Ora não é isso que acontece e todos os dias vejo gente ridiculamente feliz por circular de pé, encavalitada nestas trotinetes, a atravancar as ruas e a impedir o trânsito. A última que vi subia a Avenida Alexandre Herculano (para quem não é de Lisboa, enquadro: via absolutamente central que sobe da Avenida da Liberdade para o Rato e Amoreiras e pode, depois, descer para São Bento ou subir para a Estrela e Lapa) a passo de caracol, no centro da via, mesmo sabendo que estava a provocar um verdadeiro caos. A menina ia de cabelos ao vento, toda ela radiante pela ecologia da sua pegada, contentinha da vida por ser quem era e fazer o que fazia. Não olhava para ninguém, ignorando as travagens bruscas que provocava em carros e autocarros, cujos condutores só davam pela sua presença no minuto em que, ou havia um acidente ou evitavam o pior com uma travagem a fundo.
Irritou-me a indiferença desta rapariga, como me irritam todos os que pegam nas trotinetes elétricas e silenciosas (mais ecológicas, é certo, mas por isso ainda mais perigosas na estrada porque não se vêm nem se ouvem) para circularem extraordinariamente devagar em ruas e avenidas destinadas a carros, motas, autocarros, camiões e outros veículos autorizados. A rapariga de que falo continuou impante o seu caminho, fingindo não perceber que houve condutores que travaram à força para a proteger (desprotegendo-se a si mesmos dentro do carro e podendo provocar um acidente em cadeia!) e nos semáforos nem sequer respeitou verdes e encarnados. Atravessou a estrada como se fosse um peão, sem respeitar ninguém, porventura convencida de que é invencível. E até invisível. Na verdade, conseguiu a proeza da invisibilidade pois no Rato há uma esquadra de polícia, mas ninguém a deteve. Sem capacete e àquela velocidade no meio da via devia ser parada, multada e ver a trotinete confiscada.
Pergunto-me: se esta miúda for atropelada por quem não a viu a tempo ou, ainda pior, se alguém sofrer um acidente por sua causa, de quem é a culpa? Há Lei para regular isto? E se há, o que é que diz? Se ela ficar tetraplégica ou com sequelas para vida, também nós ficaremos com esse peso para sempre. Mas se me deixar paralisada ou se alguém morrer por sua causa, a quem podemos recorrer? Insisto: quem controla esta gente? Quem para esta moda? E quem multa os que realmente devem ser multados?
A outra mania já todos conhecemos e, porventura, experimentámos: atender o telemóvel ou, pior, escrever mensagens enquanto guiamos. Se as trotinetes elétricas são uma moda nova, esta inclinação é tão antiga como os telemóveis e só multas pesadas, mas mesmo muito pesadas, ou uma consciência individual arduamente formada podem inverter a tendência. Prometi a mim mesmo não o fazer, sobretudo depois de o meu próprio filho ter estado entre a vida e a morte por ter sido vítima de um acidente provocado pela distração de quem conduzia e teclava ao mesmo tempo. O meu filho esteve um dia e uma noite em risco de vida, com uma embolia pulmonar decorrente de uma fratura grave. Depois de passar o perigo máximo ficou internado durante um longo e penoso tempo, seguido de fisioterapia e uma nova cirurgia para retirar ferros, também ela seguida de novo ciclo de fisioterapia. Desde esta altura que prometo a mim própria não atender o telemóvel e, muito menos, escrever sms enquanto estou a guiar, mas sei como por vezes se torna difícil cumprir a promessa, dada a quantidade de urgências diárias e de imperativos imediatos.
Estamos a um mês do início de um novo ano, tempo de propósitos e de recomeços. Olho para os meus amigos tetra e paraplégicos (onde incluo o Eduardo Jorge, também ele vítima de um acidente de viação) com a certeza de que amanhã posso ser eu. Seja porque provoquei um acidente, um atropelamento ou uma morte, seja porque fui vítima de uma situação imprevista. Um dos meus mais fortes propósitos continuará a ser não atender o telemóvel enquanto guio. Usar sempre o kit mãos livres e não ver mensagens! Porque num instante a vida muda e toda esta situação agora denunciada pelo Eduardo Jorge tem que nos interpelar e convocar a uma nova consciência e a uma nova atitude.