Sempre que Cavaco Silva faz uma intervenção pública, o país escuta. Não só escuta, mas discute também, dividindo-se entre apoiantes e críticos. As intervenções de Cavaco têm impacto e mobilizam. E nos últimos tempos, apesar de continuar a gerir criteriosamente o timing das suas intervenções, Cavaco tem intervindo (um pouco) mais e num crescendo de assertividade face ao que identifica como os problemas estruturais do país associados aos erros da governação socialista.

O desejo de intervenção cívica e política de Cavaco resulta provavelmente da obrigação que sente de não se remeter ao silêncio face ao que identifica como o descalabro de mais de duas décadas de governação essencialmente controladas pelo PS. De facto, desde a falta de convergência económica ao colapso do SNS e dos transportes públicos e aos graves problemas na educação, sem esquecer a crise na habitação, não faltam razões para preocupação. A que se somam, em especial nos últimos anos, sinais de uma crescente degradação institucional.

O impacto de Cavaco pode ser medido em boa parte pelas reacções e críticas que gera, em especial à esquerda. Desde críticas (inteligentes) de que Cavaco em alguma medida menoriza Montenegro até a acusações patéticas de “fascismo”, ninguém no campo socialista fica indiferente a Cavaco. E é notório também aqui o contraste com Marcelo, recentemente desafiado e humilhado publicamente por António Costa, mas que ainda assim continua com extrema dificuldade para se conter e gerir o silêncio, não resistindo a convocar declarações para declarar que não tem nada de novo a acrescentar ao que anteriormente declarou.

O capital político de Cavaco Silva tem raízes firmes. Foi dez anos primeiro-ministro (oito dos quais com maioria absoluta), e levou o PSD às maiores vitórias eleitorais da sua história, esmagando democraticamente nas urnas a esquerda e em particular o PS. Enquanto primeiro-ministro, Cavaco soube aproveitar a adesão à UE para implementar importantes reformas liberalizadoras, ao mesmo tempo que expandiu o Estado Social português.

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Se juntarmos à carreira como primeiro-ministro as duas vitórias e mandatos presidenciais foi inequivocamente uma figura transformacional e central na política portuguesa do último meio século (conforme é tratado de forma mais desenvolvida em R. Marchi e A. A. Alves, “A direita e a extrema-direita na democracia portuguesa” in J. M. Fernandes, P. C. Magalhães e A. C. Pinto, O Essencial da Política Portuguesa, Tinta da China, 2023).

As origens sociais relativamente humildes de Cavaco Silva ajudam a compreender o incómodo que o seu sucesso gerou em alguns segmentos da sociedade portuguesa. Com postura essencialmente pragmatista, Cavaco foi um veículo para as aspirações económicas e sociais da nova classe média portuguesa do final do século passado. Nesse período, Cavaco foi capaz de articular e protagonizar como ninguém um discurso que incorporou elementos liberalizadores, populistas e nacionalistas, apontando para os benefícios da integração europeia enquanto caminho para a prosperidade e convergência.

O “cavaquismo” atraiu assim boa parte das comunidades suburbanas em crescimento, pequenos empresários, aspirantes a profissionais liberais e, muito importante, um amplo contingente de “retornados”. Contingente esse que foi também ele próprio fundamental como base de sustentação social e política das políticas reformistas e decisivo no desenvolvimento e modernização do país, muitas vezes contra o atavismo das elites parasitárias da (ex-) metrópole.

Para aqueles que, como o autor deste artigo, foram na sua juventude muito críticos desse mesmo “cavaquismo”, importa hoje reconhecer que esse período foi inequivocamente um importante período de desenvolvimento e melhoria estrutural do país.

Algumas razões para ser crítico do “cavaquismo”, em especial na sua fase final, permanecem válidas hoje. Mas importa salientar que, se hoje é possível afirmar que as (legítimas) aspirações desenvolvimentistas associadas ao 25 de Abril de 1974 foram pelo menos parcialmente cumpridas, essa concretização deve-se, do ponto de vista governativo, primordialmente a Cavaco Silva e não a Mário Soares, António Guterres, José Sócrates e, claro, António Costa.

É também isso, juntamente com as pesadas derrotas eleitorais infligidas e o facto de ser um outsider do mesquinho sistema da corte do regime, que a esquerda nunca perdoará a Cavaco. E é por isso que as suas palavras continuarão a ser ouvidas e que continuará a ser um factor a ter em conta na política portuguesa.