O circo político-mediático que se vai montando à volta das instituições europeias traz-nos aquelas lembranças felizes e amargas dos fins de festa da juventude, quando o céu clareava, mas havia sempre quem não resistisse a tentar iludir aquela sensação turva e pastosa, interrompida pelos madrugadores e irritantes guinchos de gaivota ou de melro: é que a Europa está em fim de festa e já ninguém parece dizer coisa com coisa.
Recentes episódios desse deplorável espetáculo foram o “conflito” que resultou no voto de condenação “europeu” de alegadas violações da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, pela Hungria, e a lamentável aprovação do famoso relatório Matic, pelo Parlamento Europeu. No primeiro, condena-se “veementemente” a Hungria, por o seu parlamento nacional aprovar uma lei que impede a promoção da homossexualidade junto de crianças e adolescentes. Viola a liberdade de expressão e é discriminatório, dizem. Na segunda, “recomenda-se” aos Estados que decretem o fim da objeção de consciência e que tratem a interrupção voluntária da gravidez, ou chamando-a pelo nome, do aborto como direito fundamental (!). É o mesmo Parlamento Europeu que simultaneamente acusa a Hungria de violar “valores europeus” e se atreve a propor a abrogação de outros valores que, apesar de tudo, são indiscutivelmente “europeus”.
O dito “conflito”, opondo os autoproclamados arautos do progresso aos iliberais detratores do Estado de Direito democrático, só na aparência tem alguma coisa que ver com direitos fundamentais, ou atentados à liberdade de expressão. Não é que as aparências não contem – porque as formas geralmente têm substância. Mas há mais do que isso.
Os 18 países, incluindo Portugal, que condenaram, ao lado da germanófila Comissão Europeia, o ataque aos “direitos” pela Hungria são grosso modo os que se pretendem mais avançados, inclusivos, apostados na diversidade e igualdade. Enfim, civilizacionalmente superiores, embora não ousem confessá-lo porque isso causaria melindres às suas convicções igualitárias.
Os outros, os que mantiveram a sua neutralidade, são grosso modo os que parecem ter saudades do atraso de Além-Muro de onde foram resgatados.
Curiosamente, a divisão traça-se sobre um eixo entre a antiga Cortina de Ferro e a linha que Samuel Huntington encontrou como a fronteira Leste da civilização ocidental.
Quem não quer ou não pode, não vê as forças de dissensão e de tensão que se vão acumulando no quadro multilateral de UE, à medida que a Alemanha vai dando largas ao seu secular ímpeto centrípeto. Estas pequenas escaramuças são só sinais da desagregação que ameaça colapsar a UE e que os, ou alguns, Estados-membros querem a todo o custo disfarçar. “Colapso” não é um exagero meu.
Inclusivices à parte, os movimentos contentes com todas as explicações marxistas ou neomarxistas da história e da realidade, que hoje confluem na enxurrada destrutiva da ideologia, ou melhor, da mania woke são, bem vistas as coisas, e apesar de terem conquistado foros de autoridade nas instituições políticas nacionais, europeias e mundiais, ridículos.
O ridículo ficará exposto, mais cedo ou mais tarde, estamos seguros. Quando, por exemplo, na Bélgica – a primeira a condenar os húngaros e onde as famílias muçulmanas, cuja tradição não se entusiasma com as reivindicações LGBT etc., nem com a destruição das construções sociais de género, são mais proficientes em trazer bebés ao mundo do que os apóstatas judeo-cristãos – faltar legitimidade “democrática” para lançar este tipo de condenações. Ou mesmo quando os filhos desta geração, chegando a adultos, simplesmente reagirem, espezinhando as perucas arco-íris dos seus pais.
É uma questão de tempo, até que a mania woke perca o seu caudal e deixe férteis os terrenos para a reconstrução da civilização, da cultura e do culto. É uma aposta, que talvez pareça ingenuamente optimista, mas que se firma na esperança de que o Espírito é infinito.
O que parece de mais difícil reparação é a provável queda na fenda que o possível colapso da UE abrirá.
Em Portugal, onde a União Europeia tem das mais altas taxas de aprovação popular e onde as elites não enxergam soluções que não passem pelas ideias ou pelos dinheiros europeus, ainda a noite é uma criança. Assistimos, uns impávidos, outros envergonhados, aos planos de recuperação e resiliência que “são o que temos” – disse o Senhor Presidente da República, e a tiradas humilhantes como: – “já posso ir ao banco?”.
O problema é que o fim de festa, que ainda não pressentimos ou só vemos longínquo, chegará, tão certo como cada manhã. Não é sequer hipótese Portugal abandonar a UE, pelo próprio pé.
Portugal não é livre para o fazer, como foi livre o Reino Unido. E como são livres, para não entrar, a Suíça, a Islândia, ou a Noruega. A questão é que, em caso de colapso da UE, contra o qual pouco ou nada poderemos fazer, deixará de haver “bazucas” que nos salvem. Por isso, para que o dia claro não nos apanhe a dormir estatelados e patéticos no chão da rua, temos de construir essa hipótese, ainda que seja para não querer sair. Temos de conquistar a liberdade de dizer sim ou não. Para isso, é necessário ter o rasgo de encontrar outras dependências, novas oportunidades, renovadas relações. Enfim, o que podemos encontrar, como sempre encontrámos, Além-Mar.
P.S.: Causará estranheza e perplexidade a colocação da hipótese de Portugal poder escolher, livremente, a sua participação no projeto europeu. São sintomas do estado a que chegámos: a ideia de liberdade é-nos estranha e deixa-nos perplexos.