As imagens que nos têm chegado de Ceuta e dos milhares de migrantes que, a nado, passaram a fronteira marroquina com Espanha são simultaneamente dramáticas e aterradoras. Quem não se sente aterrorizado ao ver um bebé de meses a ser salvo do mar, em situação quase hipotérmica e de afogamento eminente, não será filho de boa gente.
Todos temos tendência, enquanto consumidores da comunicação de massas, a esquecer que um problema existe se o problema não constar na agenda noticiosa. Precisamente por esta razão – entre outras, como a pandemia – temos acreditado que a crise das vagas migratórias já teria acabado ou, pelo menos, estaria sob controlo. Pois, com a situação gravíssima de Ceuta podemos concluir que não, como temos podido concluir que não desde 2015, pontualmente, quando surgem notícias de mais um naufrágio no Mediterrâneo, mais uma fuga nas fronteiras turcas, mais um resgate nas ilhas gregas, até desembarques no Algarve já temos.
Este problema nunca foi resolvido, e mais, está muito longe de o poder ser e qualquer solução não pode ignorar o facto de que os países europeus estão em posição de desvantagem face aos países do Norte de África e da Turquia, com quem foram negociados – na cimeira de Valeta, em 2015 – acordos que preveem a transferência de fundos para esses países, com valores na casa dos milhares de milhões de euros, para que estes contenham os migrantes nas suas fronteiras. Esses capitais foram enviados com o propósito de servirem de fundos de promoção ao desenvolvimento, e, até hoje, não sabemos ao certo se foram usados com esse propósito ou desviados para aproveitamento desvirtuado dos mesmos. Dinheiro dos países europeus que pode bem ter sido usado para compra de armamento, a título de exemplo, sem que isso passasse pelo nosso escrutínio.
Há várias coisas que sabemos.
Sabemos que este problema não tende a diminuir, tende a aumentar. Cada vez mais veremos fluxos crescentes de migrantes africanos e do Médio Oriente a tentarem entrar na Europa por várias razões; porque os seus países de origem os condenam, cada vez mais, à pobreza abjecta, à criminalidade violenta, ao terrorismo, à guerra, à fome, ao trabalho escravo, ao tráfico sexual, entre diversas outras aberrações.
Deve ser também mencionado que as alterações climáticas estão rapidamente a tornar diversas regiões africanas e do Médio Oriente em territórios inóspitos, onde as temperaturas durante o dia não são suportáveis por nenhum ser humano, o que faz com que uma enormidade de populações tenha de arrumar os seus pertences e fazer-se ao caminho, caminho esse onde passarão por cidades que não têm capacidade económica de os fixar demograficamente, e estas populações vão continuando o seu trilho, até este se cruzar com o nosso. Os que têm dinheiro para a viagem vão continuando, os que não têm – porque se acabou, ou porque foram vítimas de roubo – ficam à sua sorte, estejam onde estiverem.
Não pode ser desconsiderado o facto de que, para o período compreendido entre 2000 e 2050, as Nações Unidas preveem que a população africana aumente em mais de 200%. Com este aumento populacional ciclópico e com a degradação das condições económicas do continente, as migrações a que estamos a assistir hoje, daqui por 20 anos vão parecer-nos uma brincadeira e aí não haverá acordos de última hora nem fronteiras que nos ajudem a resolver este problema.
Sabemos que não nos ajuda, também, o facto de estarmos em posição de inferioridade face aos países tampão. A Turquia já por diversas vezes ameaçou abrir caminho aos migrantes se a Europa não se chegasse à frente com mais ajudas e aquilo que motivou esta crise em Ceuta também provém de um diferendo diplomático entre Espanha e Marrocos, quando Espanha autorizou a entrada num hospital de Madrid de Brahim Ghali, líder da Frente Polisário, movimento independentista no Saara Ocidental, território cuja soberania se encontra em disputa pelo próprio Reino de Marrocos, onde a Frente Polisário é sua opositora militar num conflito que beneficiou de um cessar-fogo de 30 anos, quebrado no passado mês de Novembro, e que ameaça intensificar-se com esta clara demonstração de tensão. Como forma de condenar a decisão de Espanha, o governo de Marrocos aparenta ter, deliberadamente, dado ordem para que se abrissem os portões fronteiriços com Ceuta, permitindo a passagem destes milhares de migrantes.
A situação só terá tendência para piorar se os países europeus insistirem em varrer o problema para debaixo do tapete. Chegará o dia em que a situação nos países tampão será de tal modo insustentável, que dinheiro nenhum fará com que estes países queiram suster estes fluxos. Não é a atirar dinheiro para o Norte de África nem para a Turquia (dinheiro esse que não temos a certeza para que fins é canalizado), que estas pessoas se vão fixar convenientemente naqueles territórios – até lá, irão continuar a ser amontoados em campos de refugiados e a serem tratados como peças de gado.
O que faz com que estas pessoas se queiram fixar nos países africanos são condições de vida que lhes proporcionem segurança para si e para os seus filhos, trabalho para que se consigam governar, educação para as crianças, nutrição condigna, medicação essencial, cuidados médicos elementares, saneamento básico. Estas pessoas não querem refastelar-se os nossos iates nem os nossos hotéis de luxo ou com a nossa comida gourmet, querem uma oportunidade para se manterem a si, e aos seus filhos, vivos!
Se a Europa não der início, quanto antes, a uma política de vizinhança pragmática, firme e arrojada, que facilite, numa primeira fase, aos países tampão, um mais rápido desenvolvimento económico e estabilização social, que lhes permita começar a criar condições para fixar estas massas populacionais, este problema só vai crescer de forma ainda mais descontrolada. E quando os naufrágios forem diários, quando as crises fronteiriças forem insustentáveis e quando for normal nas nossas praias ver corpos de homens, mulheres e crianças a dar à costa, já será demasiado tarde, aí não haverá muros nem cheques que nos poupem a uma tragédia humanitária de proporções gigantescas que podíamos e devíamos ter evitado.