Nas últimas semanas e a propósito da Convenção do MEL – Movimento Europa e Liberdade, o espaço mediático assistiu a uma tentativa de cancelamento do debate público, protagonizada por vários agentes que, de uma forma ou outra, aproveitaram a ocasião para questionar se a “Direita” tem, ou não, futuro como alternativa de Governo, e quais as vozes que devem ter voz, no debate público. Da minha parte, mais do que estar a comentar o que lá se passou, ou alimentar polémicas profundamente desinteressantes, e uma vez que as aspirações do MEL, de ser “uma plataforma de intervenção cívica que possa apresentar à sociedade, e aos partidos políticos, reflexões e medidas que permitam um horizonte de esperança para Portugal na modernização e na liberdade”, me parecem louváveis, aproveito as linhas desta coluna para juntar a minha contribuição para o debate.

A meu ver, vivemos hoje uma profunda agonia, fruto da incapacidade de acompanhar as disrupções da segunda vaga da revolução digital, ou Revolução 4.0., e de alinhar o mundo político e a sua ação, com as inúmeras transformações económicas e sociais, em curso, sendo essa a raiz fundamental da caducidade, não só do espaço da direita, mas de todo o espectro político-partidário.

O Estado Moderno, tal como o conhecemos, foi pensado a partir das premissas da legitimação popular do poder, da separação dos poderes, mas, sobretudo, da ideia de que o Estado existe para defesa dos cidadãos e promoção do Bem Comum: as pessoas estariam disponíveis para voluntariamente prescindir parcialmente das suas liberdades, submetendo-se às leis da sociedade e do Estado, em troca de um ambiente de paz e segurança onde cada um pudesse ter espaço para atingir as suas legítimas aspirações. Esta relação entre o cidadão e o Estado foi metaforicamente apelidada de “contrato social”, e explicada de formas não necessariamente alinhadas por pensadores como Thomas Hobbes, John Locke ou Rousseau.

A afirmação do Estado Moderno deve ser vista também como resposta política ao período de expansão económica resultante das três primeiras revoluções industriais, onde o mundo dito ocidental operou uma transição acelerada de economias muito baseadas na manufatura para um ambiente de produção em que a automação, novas formas de energia e matérias-primas, alteraram drasticamente as condições de vida de toda a população, com impactos diretos em todos os aspetos do quotidiano. Se esta confirmação do Estado Moderno e as revoluções industriais (mormente as limitações impostas pela chamada “vida em sociedade”), coincidem com um período de otimismo e melhoria significativa das condições de vida e de liberdade, sem precedentes na História da Humanidade, tal não nos deve, porém, fazer esquecer que o processo não foi linear, nem deixou de se fazer em clara tensão e luta contra ideologias que, sobretudo no século XX, tudo fizeram para eliminar a separação de poderes e diluir as liberdades no próprio Estado, projetando-o como prescritor de um Bem Comum que não aceitava a soberania popular, a separação de poderes, o pluralismo e uma noção de felicidade definida por cada um.

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A terceira revolução industrial, operada no pós-guerras, entre 1950 e 1970, desenhou-se a partir da computação, do aperfeiçoamento dos sistemas industriais e das comunicações, dando sequência às melhorias resultantes da industrialização em massa associada à segunda revolução industrial (1870-1945), esta fortemente ancorada nos benefícios retirados da utilização da eletricidade e do aço. Entre 1970 e o fim do século XX, a economia mundial limitou-se a melhorar os processos resultantes das disrupções anteriores, levando ao limite as capacidades de produção, integrando-as e difundindo-as a toda a escala do planeta: zonas geográficas como o Japão, China e todo o Sudoeste Asiático, ou a América do Centro e do Sul, viveram – à sua maneira – em menos de um século as transformações económicas e sociais que, na Europa e nos Estados Unidos, se estenderam por vários séculos.

Com o advento do novo milénio, e de uma forma só tangível nos últimos dez anos, o mundo tem vindo a submeter-se às disrupções causadas pela quarta revolução industrial. A chamada Revolução 4.0. tem como alavanca de transformação o tratamento de dados numa escala tida como inimaginável há uns anos atrás. Integrando computação, tratamento em larga escala, e automação com base em inteligência artifical, a Revolução 4.0. tem alterado o modo como nos relacionamos com a criação, como consumimos, como trabalhamos, como aprendemos ou nos divertimos, ampliando a fronteira das oportunidades de produção e o modo como conjugamos os fatores, muito para lá das conceções próprias do período anterior, gerando fórmulas de conhecimento e valor que estão drasticamente a mudar as regras e a vivência em sociedade.   

Ao contrário do Estado Moderno, que foi a expressão política das três revoluções industriais anteriores, aproveitando para se afirmar no clima de expansão económica e social desse período, hoje assistimos a um profundo desalinhamento entre a resposta política e as disrupções em curso. Pensemos no Welfare State, por exemplo. Ele corresponde a uma resposta política que encontrou suporte no clima de expansão económica, demográfica e social do pós-guerra, merecendo um grau de aceitação transversal por parte das democracias e, até, “não-democracias”, nos anos 50 a 80. Hoje, em matéria de previdência, constatamos que grande parte das políticas públicas estão progressivamente a desalinhar-se das aspirações de uma boa parte dos cidadãos e, sobretudo, dos desafios e das necessidades do futuro. Assim, se já era convicção plena, há vários anos, que o sistema de previdência incorpora, atualmente, uma profunda iniquidade geracional, com taxas de substituição na fixação de pensões permanentemente em pique; estas projeções com as disrupções provocadas pela revolução 4.0. tendem a ser ainda mais postas em causa, pois não incorporam o impacto que as alterações no mundo do trabalho e a circulação de mão de obra qualificada vão ter no apuramento de receitas. Mas não só: o sistema atual não cobre as expectativas do novo trabalhador, que terá de se reinventar várias vezes ao longo da vida, gerir as suas carreiras e o momento da sua reforma de um modo totalmente distinto, pelas características da demografia, o aumento da esperança de vida, a mobilidade geográfica, a libertação do trabalho por contrato para uma produção mais independente, entre outros pressupostos dos novos tempos que não são compreendidos pelo sistema político que herdámos do passado.

E se a caducidade da previdência é um bom exemplo da incapacidade dos Estados Modernos para responder aos desafios emergentes, não faltam, em todas as áreas, expressões concretas que nos mostram como somos hoje convidados a pensar o presente e o futuro em alinhamento com as regras dos novos tempos e das disrupções em curso. Continuamos a discutir migrações e migrantes, quando já seria tempo de aprofundar estatutos híbridos de cidadania global, com reflexos no modo como permitimos a mobilidade e financiamos educação, saúde, habitação, previdência, ou organizamos o trabalho. Continuamos a projetar as cidades e a mobilidade, esquecendo que a digitalização irá alterar muito rápida e profundamente a noção de espaço e tempo. Fingimos não perceber que as moedas estaduais são cada vez mais apenas meio de troca e cada vez menos, reserva de valor, enquanto acumulamos défices e dívida em Estados que, a qualquer momento, e num ápice, poderão ser abandonados pelos seus cidadãos mais válidos e produtivos, que tenderão a preferir zonas de atração mais competitivas, para si e para os seus. Enquanto comunidade política, somos incapazes de incorporar os processos digitais no quotidiano da resposta pública, desperdiçando recursos em atividades ineficientes, ao mesmo tempo que respondemos com enorme fragilidade a problemas como o envelhecimento, a sustentabilidade ambiental, o acesso à saúde ou habitação e às competências que dão autonomia e sustento, ou à justiça em tempo célere. Não estamos a pensar, minimamente, como distribuir os benefícios das novas disrupções e mitigar os impactos negativos que existem, sempre que há mudanças abruptas. Pior, continuamos a ignorar a realidade, em vez de olhar em frente, conduzimos com os olhos postos em permanência no retrovisor.

Os momentos de disrupção patrocinam inúmeras oportunidades e permitem projetar bem-estar a quem estiver atento aos sinais, adaptando-se à mudança. Mais, é nos períodos de disrupção e crise que se definem as regras e os valores do ciclo posterior. Por isso necessitamos – simplificando – de um novo contrato social. Que preveja, nas suas cláusulas, os novos direitos e obrigações, e renove a esperança.

À semelhança do que assistimos com a afirmação da modernidade, que rompeu com a pré-modernidade, o novo contrato social terá, necessariamente, de se distanciar de muitos pressupostos que, tendo sido válidos durante dois séculos, são incapazes de se projetar num mundo integrado, globalizado e digital. Teremos ainda de nos libertar de inúmeras amarras ideológicas que nos impedem de compreender um presente e um futuro que, na sua emergência, se apresentam sem âncoras ou referências no passado, por serem inovações e não apenas evoluções.

Não faltará quem goste de se anestesiar – e adormecer consigo a sociedade – na irrelevância. Nem os que, na sua ignorância, se deslumbram com o passado, encontrando aí uma ilusão de modernidade. Agora, mais do que partidos de direita ou de esquerda, de bastiões defensores da pureza ideológica, da recuperação pífia das grandes bandeiras caducas dos anos 60 e 70, ou de reedições de políticas públicas do passado, urge encontrar respostas para os desafios dos tempos. Sem elas, continuaremos cada vez mais pobres, mais envelhecidos, e perdidos na desesperança.